A rã na panela
Publicado no Público em 28-08-2021.
Diz a sabedoria popular que, se colocarmos uma rã dentro de uma panela com água e a formos aquecendo lentamente, esta acaba por morrer porque vai tolerando o aumento da temperatura, ao contrário de um animal que toque em água quente e, pois claro, foge dali p’ra fora. Nunca me passou pela cabeça testar esta teoria, mas dir-se-ia que a nossa espécie, Homo sapiens sapiens, apesar de ter sapiens em duplicado no nome, decidiu validar a teoria da rã na panela. E que estupenda validação tem sido, já que toda a população de quase oito mil milhões está empenhada nesta empreitada e usamos nada menos do que o planeta inteiro como tacho.
Com a recente disponibilização de mais um relatório do International Panel for Climate Change ficámos a saber que já foram ultrapassados vários pontos de não-retorno e a temperatura do planeta já está 1,1 graus mais alta do que estava no Século XIX, aumento este maioritariamente causado pela queima de combustíveis fósseis, como o carvão, petróleo e gás. Ou seja, há aproximadamente um século que nos temos dedicado diligentemente a extrair carbono que esteve acumulado no subsolo durante milhões de anos e estamos a colocá-lo na atmosfera. Diz ainda o relatório que, mesmo que parássemos as emissões agora (missão que sabemos todos ser mais impossível do que as que o Tom Cruise abraça…), a temperatura vai continuar a aumentar, até chegar a 1,5 graus acima da temperatura histórica, antes de os seres humanos se dedicarem de forma tão enérgica à tarefa de a alterar. As únicas questões a que ainda ninguém conseguiu responder são (1) “quanto” é que a temperatura vai subir, se mantivermos a trajectória actual, e (2) quais são as repercussões dessa subida no clima e nas nossas vidas? Entre previsões mais fatalistas, de cenários similares à popular série Walking Dead, ou outras mais risonhas, em que o nobre espírito humano triunfa sobre a adversidade e nos salvará milagrosamente desse cenário dantesco, numa coisa todas concordam: a temperatura vai continuar a subir e vêm aí alterações cada vez mais severas, como se tem vindo a observar com os incêndios e tempestades, ambos de intensidade crescente, um pouco por todo o mundo.
Mesmo em face desta lógica linear, as redes sociais demonstram uma resistência feroz contra as conclusões do relatório, com metade (ou talvez mais?) da população a bramar que tudo isto não passa de uma grande cabala movida pelo Al Gore, ainda ressabiado por ter perdido as eleições para o George W. Bush; há quem culpe a Greta Thunberg, acusando-a de ser um fantoche das grandes corporações que – alegadamente – pretendem enriquecer salvando o mundo da destruição. Eu, realmente, gostava de conhecer essas corporações porque, até agora, as únicas que vejo a trabalhar activamente são as que continuam a extrair carbono do subsolo e a mandá-lo para a atmosfera, enquanto vão apregoando os perigos dos carros eléctricos, turbinas eólicas e afins.
Não tenho a pretensão de dar a volta aos mais teimosos, até porque vivemos tempos tão fortemente bipolarizados, que é mais fácil transformar áqua em vinho, do que convencer um apoiante de Donald Trump que andou a idolatrar um louco varrido durante quatro anos.
Nestes dias modernos e de opiniões tão convictas, nem os factos mais gritantes, como a recente chuva no ponto mais alto do Árctico – pela primeira vez na História conhecida – consegue converter os ferrenhos defensores da teoria que se baseia na natureza cíclica destes fenómenos e, portanto, não há que temer, porque “tudo o que sobe, desce” e vice-versa. É verdade que a temperatura, concentração de dióxido de carbono e nível do mar são fenómenos cíclicos, sim senhor, já demonstrados abundantemente em variadíssimos gráficos que só variam nas cores e font da letra.
E também é sabido que existe uma correlação fortíssima entre estas variáveis porque, como manda a lógica, quanto mais gases de estufa existirem na atmosfera, maior é a retenção de calor, o que significa aumento da temperatura e degelo das calotes polares, o que leva à subida do nível de água. Já para não falar da própria expansão da água, um fenómeno de que pouco se fala, mas recordemos que o aumento de apenas um grau de um metro cúbico de água (ou seja, 1 metro de lado, vezes 1 metro de altura), significa uma expansão de um milímetro. Não parece muito, mas a profundidade média dos oceanos é de 4 quilómetros. Ora, quatro mil metros vezes 1 milímetro dá quatro mil milímetros, ou quatro metros. Continua a não parecer muito, mas uma subida do nível do mar de quatro metros era o suficiente para só conseguirmos ir ao Terreiro do Paço de canoa.
Voltemos ao gráfico (início do artigo), no qual os “cépticos” teimam em ignorar o canto superior direito da figura, que mostra a concentração de dióxido de carbono da atmosfera em valores literalmente fora da escala. A esses gostaria, realmente, de perguntar “Então e isto? Se estes ciclos se têm mantido tão certinhos ao longo dos tempos, o que acontecerá à temperatura e nível do mar, agora que o dióxido de carbono passou a barreira dos 400 ppm, ou partes por milhão?” Alguns já me responderam “Mas isso já aconteceu muitas vezes no passado!” esquecendo-se de acrescentar que sim, aconteceu, mas numa altura em que o nosso planeta mais parecia Mustafar ou, para os não-apreciadores da saga Star Wars, uma gigante bola de fogo onde só viviam pouco mais do que alguns microrganismos resistentes a essas condições funestas. Não sou perito na matéria, mas aposto que não havia Tyranossaurus rex a caçarem alegremente pelos prados jurássicos com 400 ppm de dióxido de carbono na atmosfera…
Mas permitam-me que tente o exercício (provavelmente vão) de convencer alguns indecisos sobre esta matéria, com a seguinte imagem:
Imaginem que o Planeta Terra é uma bola de basquetebol; agora embrulhem-na em papel aderente, daquele que colocamos no tupperware, para evitar que o almoço se estrague. Esse papel aderente à volta da bola de basquete é equivalente à atmosfera finíssima (de aproximadamente 100 quilómetros) que rodeia o nosso planeta. Agora pensem em aproximadamente 1400 milhões de veículos movidos a motor de combustão, a debitarem gases dos seus tubos de escape todos os dias, todas as horas e todos os minutos, desde há cem anos a esta parte; agora juntem-lhe 10 milhões de fábricas. Pensem nestes números e repitam-nos, particularmente a parte das explosões, que ocorrem dentro dos motores, todos os dias, todas as horas, todos os minutos, no último século. Onde julgam que fica aprisionado todo esse gás, que sai dos motores? E o metano que sai dos intestinos das vacas, que tanto apreciamos no prato e que já são mais de mil milhões?
Vamos com um século a lançar gases para uma atmosfera finíssima, num planeta com um perímetro de 40 mil quilómetros (no equador), ao qual se dá a volta em pouco mais de um dia, num avião de passageiros normalíssimo. Acham realmente que a nossa bola de basquete, depois de um século de pancada todos os dias, todas as horas, todos os minutos, sem excepção, não ia acusar o toque?
Se isto ainda não vos convenceu, pensem nos mares, que ocupam aproximadamente 70% da superfície do nosso planeta. Agora lembrem-se do que 4,6 milhões de embarcações de pesca lhes fizeram durante os últimos 50 anos. Apesar da disparidade de opiniões em torno das alterações climáticas, julgo que qualquer mente lúcida está consciente de que os principais stocks de peixes explorados comercialmente levaram uma cacetada na ordem dos 90% no último meio século, certo? Por favor digam-me que ninguém duvida destes números. Então, agora, raciocinemos: se 4,6 milhões de barcos de pesca rebentaram com 90% dos peixes deste planeta em 50 anos, então os 1400 milhões de carros mais 10 milhões de fábricas mais 1000 milhões de vacas a mandarem gases para a camada de papel de celofane que embrulha uma bola de basquete de 40 mil quilómetros durante um século – sem parar – não têm efeito nenhum?
Eu não sei que teoria subscrevem, ou por que ideias pautam as vossas vidas, mas eu cá tenho um filho de dois anos e gostava muito de arrefecer o lume da panela em que está a crescer. Até porque não há como saltar fora dela. Ou melhor, se tiverem um quarto de um milhão de euros podem sempre pedir ao Richard Branson, Jeff Bezos, ou Elon Musk que vos tirem daqui p’ra fora, mas tenham noção que, depois da selfie com mais likes das vossas vidas, passados poucos minutos já cá estão de volta, neste caldo morninho onde todos estamos de molho, alegremente e sorridentes, como se nada se passasse.
Já estava na hora de abrirmos os olhos e fazermos as mudanças necessárias, antes que a pele comece a soltar-se dos ossos…
Para mais linhas de natureza interventiva visite a nossa lista de livros publicados.
Biólogo marinho, doutorado em pesca comercial de tubarões e raias
Professor adjunto Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, Politécnico de Leiria
Fundador e general manager da Flying Sharks
Direcção da Loving the Planet
2 Comentários
Sandra Teixeira de Sousa
Excelente artigo, excelentes metáforas. Muito obrigada!
João Correia
Muito obrigado, Sandra! 🙂