A trabalhar nas minhas hérnias

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No final de 2023 a Flying Sharks recebeu uma encomenda volumosa para um aquário em Marrocos e esta inclui sardinhas, que são uma das espécies mais difíceis de trabalhar no fabuloso mundo aquariológico. Isto deve-se ao facto de terem escamas incrivelmente frágeis, que praticamente saltam para fora do bicho assim que olhamos para elas!

À conta dessa fragilidade, ditou a prudência que, antes de os animais chegarem, nos preparássemos devidamente para elas, o que incluía adquirir Flumequina, um antibiótico usado regularmente para prevenir infecções. O que eu não sabia, mas viria a aprender, é que a legislação europeia que regulamenta a aquisição e administração de fármacos mudou em 2022 e, como tal, o processo de a comprar viria a revelar-se bem mais difícil do que eu esperava…

Permitam-me que partilhe a minha primeira experiência com a Flumequina, que é um dos antibióticos mais poderosos existentes no mercado.

Corria o ano de 1997 e eu estava em Olhão, com o boné do Oceanário, a capturar cavalas com a colaboração da Tunipex. Normalmente desempenhava esta função enjoado que nem uma pescada e com muito poucas horas de sono na caderneta. Acordava às 4 da manhã, embarcava às 5, chegava a terra meia dúzia de horas depois e corria os 200 metros do cais para o tanque do Oceanário, no porto de pesca, com um saco de 10 ou 15 quilos de água e cavalas nas mãos.

Mas, às 11 da manhã o dia ainda ia curto porque, a seguir ao embarque e descarregamento das centenas de peixes capturadas diariamente, vinha a hora de vestir o fato de mergulho e saltar para dentro do enorme tanque com 10 metros de diâmetro, com uma garrafa de ar comprimido às costas e 10 quilos de chumbo no lombo, para escovar e aspirar a floresta luxuriante de algas que cresciam descontroladamente neste tanque, exposto à luz implacável do sol algarvio. Era um trabalho extenuante e que me manteve longe da minha mulher, Leonor, na altura, de Domingo a Sábado, durante os últimos meses de 1997 e boa parte dos primeiros de 1998.

Como se este trabalho não fosse suficientemente divertido, a dada altura as cavalas foram assaltadas por uma infecção microbiana violentíssima, que me levava a retirar umas dezenas de animais mortos do fundo do tanque diariamente. Não tardei muito a reportar esta catástrofe aos meus chefes Mark Smith e Beth Marshall, em Lisboa, que me recomendaram dar um salto na Timar, empresa de aquacultura que já não existe, e comprar dois barris de 25 quilos cada da bendita Flumequina, que deveria tratar eficazmente da saúde da maldita bactéria que andava a matar as cavalas que tanto trabalho tinham dado a capturar.

Não me recordo exactamente da quantidade de Flumequina usada em cada um dos cinco – acho eu – tratamentos, mas sei que o audacioso plano envolveu reduzir o volume do enorme tanque de quase duzentos mil litros para metade, de forma a facilitar a sua dissolução e, já agora, poupar na quantidade de pó necessária, porque o diabo do químico salvador não era barato. Com os dois barris carregados no meu Golf GTD de 1987, na altura com uns respeitáveis 10 anos de idade, agora uma peça de museu na garagem do meu pai, só faltava mesmo era decidir como se iriam dissolver os 5 quilos de pó oleoso na imensidão de água do tanque olhanense.

“Não te preocupes, que eu trato disto.” disse eu ao Mark através do telemóvel do departamento de biologia e que tinha um número que me viria a ser atribuído quando me tornei supervisor, uns meses mais tarde. Quando saí do Oceanário, em 2009, pedi se podia ficar com o dito e o então administrador, João Falcato, aceitou sem reservas, por saber que as duas décadas de contactos que estabeleci com aquele número eram (e são) um bem precioso e inestimável. E é assim que tenho o mesmo número de telemóvel desde o muito distante 1997.

Mas voltemos ao momento em que descarreguei os dois barris do Golf e abri a válvula do fundo do tanque, cujo nível de água começou a descer rapidamente, demorando a chegar a metade mais ou menos o tempo de que precisei para vestir novamente o meu fato de mergulho, ainda húmido da limpeza dessa manhã. Poucas coisas dão mais prazer na vida do que vestir um fato de mergulho molhado numa tarde fria e chuvosa e só os apreciadores desta prática é que terão descortinado a ironia deste comentário.

Fato vestido, nível de água do tanque mais ou menos pela cintura, só me restou agarrar nos ditos 5 quilos de pó oleoso, que resistiam teimosamente à dissolução na água salgada repleta de cavalas enfermas. Mas este vosso criado não aprimorou a sua carreira no excitante mundo da aquariologia rendendo-se perante os desafios, por isso comecei a dar aos braços, como se fosse uma ceifeira debulhadora, e a dissolver a Flumequina na água. Esta começou por resistir, mas os meus braços foram mais persistentes e não tardou muito até a camada pastosa de pó, que flutuava à superfície, se ir dissolvendo até mais não restar do que uma névoa que, todos esperávamos, salvaria as pobres cavalas que nela nadavam.

Nesse momento não havia muito mais a fazer senão sair da água, garantir que os sistemas de filtração estavam funcionais e as válvulas devidas estavam abertas ou fechadas, consoante as suas funções. Despi o fato e, em vez de tomar a tradicional ducha na rua com a mangueira fria da nossa estação, preferi poupar-me a duas doses dessa crueldade no mesmo dia e conduzi até ao hotel Mónaco, no Montenegro, onde abusei da água quentinha que me retemperou a alma e os ossos resfriados. Nessa altura ainda não sabia que andava lentamente a trabalhar na minha hérnia discal L5/S1, que só mostraria os seus dentes em 2004, depois de muitos milhares de sacos de cavalas e garrafas de mergulho levantadas estupidamente com as costas e não com os joelhos.

Pausemos para saborear uma pizza Real no restaurante Bella Italia na Rua de Santo António, em Faro, um mimo que reservava para dias particularmente exigentes. A manhã seguinte mostraria se o esforço flumiquinoso do dia anterior daria frutos. Essa noite foi tranquila e apaguei a luz cedo porque, nesses dias gloriosamente isentos de internet, dedicava-me à leitura, mas de livros e não e-mails, ou redes sociais, um flagelo que ainda desconhecíamos e que só viria a atormentar-nos anos mais tarde. Ainda me lembro tão bem dos primeiros comentários ao papel ‘salvador’ que o e-mail viria a ter nas nossas vidas. “Salvador??” pensava eu… “Esta tropa ainda não percebeu que, quando o e-mail substituir o fax, em vez de tratarmos de 3 ou 4 coisas num dia, vamos tratar de 30 ou 40.” Nem sonhava eu quão enganado estava, subestimando amargamente os números anteriores, especialmente quando esta ferramenta maldita saltou dos desktops e laptops para os telemóveis.

Apraz-me informar que a manhã seguinte revelou um tanque praticamente isento de mortalidades, o que validou novamente o poder fortíssimo da Flumequina e o motivo pelo qual tanto queria meter-lhe as mãos em cima em 2024, a poucos dias da nossa primeira captura de sardinhas em Peniche.

Saltemos então para o dia 14 de maio de 2024, quando tive o tal excelente almoço com a tropa do ‘Amuras’ e ‘Aventureiro’, após o qual abri a caça à bendita Flumequina, caça essa que se viria a tornar épica. Poupo-vos os detalhes, mas posso acrescentar que, a dada altura, ia partilhando os meus esforços com a equipa e a lista de empresas contactadas já ultrapassava as duas dezenas, respondendo todas invariavelmente que esse antibiótico não existe em Portugal (apenas em comprimidos para cães) e o pó teria de ser importado do estrangeiro. E foi aqui que a porca começou a torcer o rabo, porque essa importação carecia de uma autorização e licenciamento especial por parte do INFARMED e da DGAV. Quanto à DGAV, não havia nada a temer, porque estamos devidamente licenciados em várias frentes. No que diz respeito ao INFARMED, um nome que já não ouvia desde os dias em que fizemos uns belos milhares a vender máscaras sociais, luvas de nitrilo e testes Covid, o caso parecia ser bem mais complexo.

Abreviemos esta luta hercúlea até chegar ao ponto em que se tornou claro que a aquisição do produto ia precisar de uma ‘Autorização de Utilização Especial’, ou A.U.E., que seria emitida pela DGAV, pelo que remeti o devido pedido. Na manhã de 16 de maio recebi um telefonema da dita instituição a perguntar-me porque diabo queria eu um dos antibióticos mais potentes do planeta e eu expliquei que seria usado para prevenir mortalidades em sardinhas que seriam capturadas passados poucos dias. Explicaram-me então que os antibióticos se dividem nas categorias ‘A’, ‘B’, ‘C’ e ‘D’, sendo ‘A’ a mais potente de todas e reservada para seres humanos. A Flumequina está na categoria ‘B’, ou seja, é uma daquelas substâncias tão eficazes que o seu uso se tornou bastante restrito, porque um dos flagelos da medicina moderna é precisamente o facto de os antibióticos serem usados de forma tão indiscriminada que as bactérias acabam por ganhar-lhes resistência. Esse é o motivo pelo qual alguns só podem ser usados com seres humanos, os tais de categoria A, precisamente para garantir que não são inseridos nas comunidades bacterianas à doida, como tem sucedido com os restantes. A profissional da DGAV explicou-me que estamos a perder esta guerra com as bactérias e que os ditos antibióticos A são a nossa última esperança porque, quando as bactérias ganharem resistência a esses, estaremos perante uma hecatombe médica de proporções bíblicas.

Ora a nossa Flumequina não é A, mas é B, o que significa que a sua utilização também está sujeita a fortíssimas restrições, pelo que a sua utilização meramente para fins preventivos seria liminarmente recusada, sugerindo-me a técnica da DGAV que procurasse uma alternativa C ou D, que foi exactamente o que fiz nessa mesma tarde, quando um dos representantes dos muitos laboratórios que tinha contactado durante a semana me recomendou dar uma apitadela à Sorgal, fábrica de rações para animais, incluindo ração medicada para peixes. Nesse mesmo dia conduzi para Cantanhede no fim das aulas, onde me reuni com o grande Rui Guedes e António Pires para um magnífico jantar, antes de passarmos o dia 17 a fazermos testes aos tanques do nosso magnífico contentor de transporte de peixes vivos, ou ‘Estação Móvel’. Foi precisamente durante a tradicional leitãozada que nos retemperava a alma a meio do dia que fechei negócio com a Sorgal. Alguns dias depois teríamos ração devidamente medicada nas mãos, mas, mais importante ainda, teríamos as nossas maravilhosas sardinhas a nadar no tanque de Peniche, operação marcada para a segunda-feira seguinte, dia 20 de maio.

Essa aventura ficará para outra ocasião, mas – spoiler alert – fica já aqui um registo videográfico do resultado.


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