Bebezoco vampiroso

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Aqui vai mais um excerto das sequelas do “Tubarões Voadores“. Se quiser colocar o logotipo da sua empresa/organização na capa das sequelas, é só contactar o autor.


A madrugada de 10 de abril [de 2020] foi fustigada com nova dose de crueldade vampirosa do Nikola, que acordou a mamã a meio da noite e decidiu cravar-lhe as quatro dentolas com tanta ferocidade que ela acabou na casa de banho a chorar num pranto que dava dó, porque eu bem sei a dedicação com que a Nina se entrega à missão de ser a melhor mãe possível. O que mais a preocupava, e a mim também, é que a irregularidade nas mamadas comprometesse a produção de leite, porque o cérebro feminino é uma máquina que eclipsa o super-computador Rehoboam do Westworld. De facto, a produção de leite da mamã adapta-se às necessidades do bebé e, quando o cérebro da progenitora sente que o bebé já não precisa de tanto leite, manda diminuir a produção nas glândulas mamárias. Ora, a perspectiva de dar leite em pó ao Nikola era algo que a Nina equiparava ao mais profundo dos horrores, por isso começou a temer as crises piranhosas do Nikola com um terror crescente. Perante as minhas palavras simples de conforto, que a asseguravam “Vai ficar tudo bem, não te preocupes…” lá teve uma explosão atómica de impropérios, que me chamavam os nomes todos e mais alguns, insinuando que eu não estava a perceber a gravidade da situação.

Assim foi que demos por nós a meio da noite agarrados aos telefones, em busca de ajuda por esse mundo fora. Surgiu de facto alguma esperança num hospital americano, algures no Ohio, aparentemente especializado em aconselhamento sobre este problema específico. Sou o primeiro a admitir que ‘hospital americano’ foi direitinho ao canto financeiro do meu cérebro, que accionou logo mil campainhas de alerta e me lembrou que a ausência de facturação da Flying Sharks não me permitira despender os mil dólares que seguramente custariam uma sessão de consultoria com estes manos. Tentei então um tímido “Então e não haverá ninguém em Portugal que nos possa ajudar?…” que foi acolhido com novos impropérios, como se tivesse avançado com a sugestão mais imbecil da história das sugestões. Mas às vezes, por mais que custe, um gajo tem mesmo é de ficar calado.

Entendendo que não era o melhor momento para dar início a um debate sobre a proficiência lusitana – versus a americana – na nobre arte de ajudar mamãs com filhos mordedores, entreguei-me à busca telefónica com vigor redobrado. E ainda bem que o fiz(emos), porque apercebemo-nos que a La Leche League – organização americana especializada no problema – tinha uma sucursal em Portugal! Tive vontade de beijar o écran do telefone quando vi a página deles no Facebook, enviando-lhes uma mensagem de imediato, na qual explicava que tínhamos um bebé que estava armado em boneca-da-Barbarella e tinha decidido subitamente trincar monstruosamente os mamilos da mamã, que já estavam em carne viva e não havia Purelan que os ajudasse.

Poucos minutos depois, lá para as seis e meia da manhã, experimentámos novo progresso encorajador. Pela primeira vez na sua existência de oito meses, o Nikola finalmente bebericou alguns golos do leite da mamã através de um biberão que, depois de descongelado e devidamente aquecido à temperatura corporal, lá deslizou pelas goelas do bebé, que não o recusou, como nas vezes anteriores. “Menos mal!” pensámos os dois – aliás, os três – antes de irmos finalmente para a cama, exaustos.

Por estes dias apercebi-me de algo curioso: o lockdown trouxe uma profunda alteração aos meus hábitos diários – e de toda a gente, em boa verdade – e ninguém (acho eu…) morreu por causa disso, o que não deixa de ser um monumento à adaptabilidade da espécie humana. Por exemplo, os meus emails passaram a ser completamente negligenciados até às quatro ou cinco da tarde, uma vez que o pequeno-almoço, duche, gráficos Covid, redes sociais, compras, ginásio, tempo com o Nikola e afins davam cabo da agenda até meio da tarde, quando o Nikola dormia a sua segunda sesta. Aliás, rapidamente percebi que a rotina diária girava em torno das três sestas diárias do Nikola, uma por volta das onze da manhã, outra lá para as três da tarde e, finalmente, um belo soninho depois do banho, aí pelas oito da noite. Basicamente, estes eram os três intervalos que tinha para trabalhar, sendo praticamente impossível fazer fosse o que fosse enquanto o chouricito estava acordado.

Foi também curioso notar como, de repente, andávamos todos de máscara nas lojas, nas quais brotaram magicamente painéis de acrílico, como se lá tivessem estado a vida inteira. Habituámo-nos a esperar dois metros atrás uns dos ouros, hábito que – admito – adorei, porque sempre me meteu nervos ter palhaços praticamente encostados a mim nas filas de pagamento.

Na segunda-feira, dia 13 de abril, estávamos na clínica Amamentos à hora marcada, onde fomos atendidos por uma simpatiquíssima médica, depois de rigoroso processo de esterilização das mãos à entrada. O espaço estava deserto, mas tresandava a limpeza, salubridade e desinfecção. A doutora fez algumas recomendações acerca da forma de amamentar o bebé Nikola e recomendou uma sessão de massagem sacro-craniana com uma fisioterapeuta, que ajudaria o nosso Nikola a relaxar uma vez que, aparentemente, o motivo das mordeduras seria excesso de tensão no corpinho frágil do nosso bébucho. Desconfiando fortemente que uma massagem resolvesse milagrosamente o problema, efectuámos a marcação da dita para dois dias depois, saindo com uma receita de creme rejuvenescedor – e protector – para os mamilos da mamã. Uma paragem rápida para sacar o belo creme da farmácia, depois de novo rigoroso protocolo de observação de distância entre pacientes que esperavam pacientemente – na rua – pela sua vez e, finalmente, chegámos a casa. Dois dias depois a massagem decorreu sem incidentes, ensinando a terapeuta à Nina todos os movimentos que deveria fazer. Eu fui tirando filmes com o telefone e aprendendo como relaxar devidamente os músculos ainda incipientes do Nikola. Verdade seja dita que, não sei se foi das massagens ou do facto de a Nina ter aprendido a lidar com as dentuças do nosso vampirito, mas os gritos de dor foram substituídos por firmes – embora ternos – “polako polako, Nikola!” que é sérvio para “Tu tem calma, maluco!” E, da mesma forma que apareceu subitamente, sem qualquer aviso, a crise das dentadas desvaneceu-se em poucos dias, como se nunca tivesse existido.


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