Buldojé

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Escrever sobre a odisseia que é criar um ser humano novo, enquanto desenvolvemos uma actividade profissional que permita colocar comida na mesa – tarefa tornada ainda mais árdua durante uma pandemia de natureza planetária – é um acto de alguma ostensividade, já que achamos que aqueles deliciosos momentos que experimentamos com o nosso pequeno rebento, são de tal forma extraordinários que merecem ser partilhados com o mundo. Os amigos mais próximos comentam os ditos actos com corações generosos nas várias plataformas sociais, enquanto o restante mundo segue em frente com a sua vida, cada um carregando a sua cruz e tentando chegar ao fim do mês sem perdas de juízo, financeiras, ou de cariz nutricional, que é a forma mais eufemística que encontrei para referir que andamos todos ao mesmo, que é “comer, não ser comido e ir acumulando uns trocos”.

No fundo, viver é isso. É ir comendo umas coisas que nos permitem continuar a mexer e respirar, ir fugindo dos ferozes predadores que o mundo nos atiça e ir acumulando os pequenos objectos e momentos que nos tornam nos seres que somos. No meu caso, e da Nina, confesso-me deliciado com este privilégio que é sustentar uma pequena vida e regá-la de carinho e de memórias que não lhe custem muito a curar num futuro divã psiquiátrico. Dos vários momentos marcantes incluídos nesta alucinante viagem que é ser responsável pela fragilidade dum novo ser humano neste planeta ainda mais frágil, destacam-se os tradicionais primeiro sorriso, primeiros passos, primeiras palavras e tantos, mas tantos outros momentos inolvidáveis e que espero ter o talento de ir registando nestas páginas, para que nunca caiam no esquecimento. Mesmo que as vicissitudes editoriais não as convertam num volume que possa ser disponibilizado ao público, pelo menos servirão para o pequeno Nikola se conhecer, durante os anos em que os papás fizeram tudo o que estava ao seu alcance para lhe garantir uma vida feliz.

Dois anos depois do início desta jornada maravilhosa, chegámos finalmente ao momento em que vemos o pequeno cérebro do nosso estimulante besourinho começar a fazer conexões que são tão extraordinárias quanto enternecedoras. Por exemplo, já percebeu que um “buldojé” (que é bébinhês para “bulldozer”) é uma máquina envolvida em obras e que estas tradicionalmente estão rodeadas de grades, fita de plástico, etc. Isso significa que, desde há algumas semanas, o vislumbre daquela fita amarela e preta, ou de umas grades metálicas no passeio, despoletam um muito perspicaz “buldojé”!

Também já entendeu que há uma classe de veículos que gosta de anunciar a sua presença com cores e sons que se destacam dos restantes, como as ambulâncias amarelas (pronunciadas de forma exemplar como “ambulância”), os vermelhíssimos carros de bombeiros (ou “beiros”) e os ruidosos carros da polícia, mais conhecida inicialmente como “pichichia”, mas agora já pronunciada correctissimamente como “polícia”. E assim é que sons ou cores garridas na via pública são rapidamente associados a um destes três órgãos que nos protegem das malvadezas do mundo cruel.

Como se estas interligações não chegassem, adicionemos o factor ‘trilingue’, já que o papá conversa maioritariamente em português com o filhote, a mamã em sérvio e os dois adultos da casa optam pela língua neutra do Shakespeare, sendo que um ou outro “fuck” ou “fucking hell” ocasionais lá vão derrapando, quando lemos uma mensagem de um cliente a dizer que chegaram dois peixes de papo para o ar ao seu destino, ou a contabilista envia o IRC do ano passado para pagar. Percebendo imediatamente que essas palavras estão associadas ao conceito de ‘contrariedade’, o pequeno Nikola solta-as com abundância quando deixa cair algo, ou quando tropeça, ou seja, sempre que algo não corre como ele esperava. Nunca deixa de ser prodigioso ver a rapidez com que um tropeção na cama é seguido por um “fuckinghell” sibilado pela voz mais ternurenta.

Mas regressemos ao trilinguismo, porque uma queda despoleta “caiu”, logo seguido de “fell” e ainda de “padé” (versão sérvia do muito tuga “já me espalhei”). “Cão” é logo seguido de “dog” (que ainda não tem versão balcânica), mas “gato”, “cat” e “matza” tem. Curioso também é que a Nina cultivou amizade com uma mamã neozelandesa, pelo que o seu filho “Lolo” (que é o petit nom que o Lorenzo prefere) e o Nikola já são grandes amigos, brincando em casa um do outro e trocando, até, beijinhos carinhosos à despedida. Mas a amiga neozelandesa introduziu o termo “lorry”, e assim é que o muito bem pronunciado “camião”, tem nada menos do que quatro formas, que incluem o sérvio “camióne” e os anglófonos “truck” e “lorry”. É obra! “Disseste “obra”, papá?? Buldojé!!”

Mais recentemente o nosso rebento tem vindo a tornar-se grande apreciador de maçã assada, ou “machadada” e gosta muito de brincar com o camião da “coki-cola”. E recordemos que as obras não têm apenas “buldojés”, porque também têm “chindindo”, mais conhecidos como “cilindro” (para alisar o alcatrão) e, pois claro, “beira”, que é uma “betoneira”.

Não satisfeita com as três línguas que o petiz parece estar a dominar com enorme desembaraço, a esposa pôs-se em terreno na busca por uma babysitter que possa conversar com o bebé numa outra língua, enquanto a mamã limpa a casa. Assim é a minha extraordinariamente pragmática – e lindíssima – mulher, que não tem um dia de folga há mais de dois anos: em vez de pagar a uma pessoa que a ajude com a limpeza da casa – algo que o papá está farto de sugerir, porque também anda fartinho de passar o dia a lavar a louça, recolher objectos e aspirar o chão entre emails – a esposa prefere pagar a alguém que brinque com o nosso bebé enquanto ela própria organiza o lar à sua moda.

A primeira candidata, francesa, provocou alguma consternação, particularmente no plano visual, porque a sua esbelta figura não passou despercebida a ninguém, nem os dois revólveres que exibia ostensivamente, languidamente cobertos por uma fina camada de tecido levíssimo, que claramente não a protegia muito do frio que se fazia sentir nesse dia. Perante tal visão, a esposa comunicou-me peremptoriamente “Esta só cá vem brincar com o Nikola quando tu não estiveres em casa.” Fingi algum choque com esta perturbadora falta de confiança, mas meia dúzia de neurónios tiveram o discernimento de abraçar calorosamente o pragmatismo da esposa, que não está em ponto da vida em que tenha de ter preocupações evocativas dum passado mais libertino que o esposo fez o favor de partilhar com o mundo na forma escrita. Curiosamente, a French Maid de Paris, que não gostava de usar máscara e aspirava a ser uma influencer com mais poder do que o Tony Robbins, acabou por sucumbir ao temível SARS-CoV-2 que, não lhe tirando a vida, acabou por lhe dar uma boa lição em humildade.

A dita menina foi assim substituída por uma portentosa Anastasia, russa de nome e origem, que conversa animadamente com o Nikola na língua de Vladimir Putin, o que o leva a repetir pontualmente coisas como “machína”, que é a versão russa de “máquina”. Dotada de aparência igualmente cativante, esta vinha salpicada com uma postura consideravelmente menos coquette, pelo que a sua presença no Lar Correia, em simultâneo com o paterfamilias, foi tida como uma aposta segura e desprovida de qualquer sinal de alerta.

Para terminar este segmento, só resta mesmo apregoar aos sete ventos o poderosíssimo instinto maternal da minha Nina que, sem uma horinha sequer de folga há dois anos, se atira de corpo e alma à nobre tarefa de cuidar do nosso Boobeloo. Só espero que o pequerrucho o reconheça, quando tiver idade para tal. Até lá, o papá agradece à mamã pelos dois.

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