Falhar não era uma opção #2

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Este post começa com um excerto do ‘Tubarões Voadores’ e foca-se no tema “Falhar não é uma opção #2”, acerca do qual já escrevi umas linhas há umas semanas.


Comecei a trabalhar no magnífico Oceanário de Lisboa no dia 1 de Agosto de 1997.

Não teriam passado mais de duas ou três semanas desde o meu início quando o Mark e a Beth me chamaram para uma reunião e me explicaram que o Oceanário tinha construído uma estação de manutenção de espécimes vivos em Olhão, onde operava a Tunipex, empresa de pesca comercial que capturava atuns, e outros peixes, ao largo de Tavira, utilizando uma armação, que é uma armadilha gigante montada no mar. Facto curioso, a povoação Armação de Pêra tem esse nome porque já teve uma destas armações ao largo da sua costa, há muitos e muitos anos, antes da pesca excessiva ter dado cabo dos stocks de atum. Hoje em dia, contudo, legislação apertadíssima controla esta pesca, que está em recuperação (lenta). Outro facto curioso, o organismo que gere a captura destes animais denomina-se International Commission for the Conservation of Atlantic Tuna (ICCAT), mas alguns anos de intervenção menos agressiva valeram-lhe a denominação mais jocosa International Conspiracy to Catch All Tuna.

Na dita reunião, o Mark e a Beth explicaram-me que o colega Vilela tinha sido contratado em 96 para capturar peixes e mantê-los nas instalações do Oceanário em Olhão. Dir-se-ia, contudo, que as people skills deste jovem ‘recém-licenciado em biologia marinha’ – que não é exactamente o mesmo que um ‘biólogo marinho’ – estavam deveras aquém das necessidades requeridas pelas suas funções, até porque a Tunipex não apreciou quando viu corvinas cedidas gratuitamente ao Oceanário, à venda nos restaurantes de Olhão. Mas estas conjecturas poderão eventualmente ser infundadas, pelo que nos devemos afastar deste pântano e agradecer ao incomodativo Vilela a oportunidade que tinha acabado de me providenciar, já que fui convidado para reatar a relação entre o Oceanário e Tunipex que ele tinha (alegadamente) melindrado.

Nesses tempos, foram vários os colegas do Oceanário que desdenharem da minha ascensão meteórica, tendo em conta que passei de ‘estagiário’ a ‘biólogo’, depois a ‘supervisor’ e ainda a ‘curador’ em pouco mais de 18 meses. Era frequente algumas almas maldosas invocarem a amizade que o Mark sentia por mim, e reciprocamente. Essa tropa invejosa esquecia-se, contudo, de que os meus primeiros três meses foram passados a reestabelecer a relação com a Tunipex, operação que foi tudo menos fácil.

E assim foi que, depois de relativamente pouco tempo a lavar as caixas de plástico dos alcídeos, lá fiz a mala e fui para Olhão. Durante esses três meses ‘Olhanenses’, acordava às quatro da manhã de segunda a sábado, embarcava no navio ‘Guentaro-Maru’ e capturava peixes para o Oceanário, normalmente enjoado que nem uma pescada. Recordemos que comecei a trabalhar no Oceanário no dia 1 de Agosto, mas os meus tempos de Tunipex começaram em meados de Setembro, pelo que apanhei o melhor que a meteorologia Algarvia tem para oferecer a um biólogo marinho de estômago embaraçosamente mal preparado para os rigores da ondulação outonal.

Quando chegávamos a terra, cerca das 11 da manhã, corríamos uns bons cinquenta metros com sacos de plástico que pesavam 10 a 15 quilos, porque continham água e cavalas. A corrida ia do cais onde o navio atracava, até ao tanque onde as cavalas eram depositadas, isto porque o Allan, apesar de ser um tipo porreiro, achou que gastarmos sessenta contos (trezentos euros) numa armação metálica que permitisse içar o tanque com peixes desde o navio até ao cais, onde pudesse ser transportado pelo empilhador da Tunipex, era uma despesa elevada demais na construção de um aquário orçamentado em setenta milhões de dólares. Foram tempos em que fui, por isso, alimentando carinhosamente a minha hérnia discal L5/S1, que ia furtivamente assumindo o papel preponderante que viria a ter, mais tarde, na minha vida.

Uma vez transportadas todas as cavalas, e outros peixes, desde o navio até aos tanques, era hora de vestir o fato de mergulho – muitas vezes à chuva – e mergulhar no tanque grande de Olhão para escovar as algas e aspirar os detritos dos seus dez metros de diâmetro e quase dois metros de altura. Seguia-se um almoço rápido e reparações variadas durante a tarde. Este ritmo mantinha-se diariamente até sábado, altura em que, pelas 14 ou 15 horas, rumava a Lisboa, para jantar e passar um único serão por semana com a minha esposa. O domingo envolvia, por vezes, uma cinemada à hora de almoço, com um gosto agridoce porque, cerca das 18 ou 19 horas, estava novamente na hora de rumar a Olhão e recomeçar a semana.

Foram mais ou menos três meses disto que me garantiram o respeito dos meus superiores no Oceanário. Isto e a reliability, como dizem os americanos, porque uma tarefa entregue a João Correia, era uma tarefa que seria bem cumprida e dentro de um prazo impressionantemente reduzido. Esta prestação de profissionalismo e dependability já eram constantes desde os tempos do zoo e do IPIMAR, embora tivesse percebido que a melhor prestação do mundo não me levaria a lado nenhum na carreira de funcionário público. Em suma, uma carreira bem-sucedida tem um preço e esse preço é ‘trabalho’ e, por vezes, alguns cojones para assumir riscos. Convenhamos que deixar a segurança do IPIMAR, em que estava prestes a ser contratado como ‘funcionário público’ – com todos os direitos e regalias que tal envolve -, para me tornar ‘estagiário’ no Oceanário, foi um risco. Um risco grande, mas calculado, porque sabia perfeitamente que poderia contar com a liderança meritocrática do Mark, sem a qual não teria dado esse salto.

Moral da história: como diz o povo, “Quem não arrisca, não petisca”. Como também diz o povo, “Quem não trabuca, não manduca”, que é como quem diz “Repetir as mesmas coisas, vezes sem conta, e esperar resultados diferentes é… estúpido.”

Como se podem enfrentar, assim, os grandes desafios que estas decisões nos trazem? Simples: focamo-nos na ‘meta’ e focamo-nos no ‘objectivo’. Foi rigorosamente isso que fiz quando assumi o compromisso de ser o melhor tratador de tubarões possível no Jardim Zoológico. Na altura, focava-me obsessivamente no glorioso dia em que os bichos seriam transportados para o seu destino, o aquário de Barcelona, vivos e de boa saúde. No Oceanário, focava-me doentiamente no dia da abertura, 22 de Maio de 1998, e num Tanque Central carregado de peixes lindíssimos e saudáveis. Depois da abertura, focava-me metodicamente no momento final em que os peixes de cada operação eram introduzidos, sãos e salvos, nos seus respectivos tanques, permanecendo esta obsessão durante a transição para a Flying Sharks, em que o trabalho é similar, mas já lá iremos. Para já, está na hora de partilhar a história do meu primeiro ménage à trois, que envolveu uma tubaroa francesa de muito mau feitio.


Em suma, a minha função era atestar o Oceanário de Lisboa com peixes olhanenses até ao fatídico dia 22 de maio. E não há motivos ou desculpas nenhumas do planeta que me valessem caso falhasse nessa tarefa. A data tinha de ser cumprida e falhar não era – nem por sombras – uma opção.

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