Inferno Turco (patrocinado?)

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Poucos dias depois da celebração dos 27 anos de carreira no mundo dos aquários, pareceu-me fofinho partilhar um dos capítulos da sequela do “Tubarões Voadores”, que descreve precisamente a que foi a operação Flying Sharks mais exigente até à data.

Entretanto… O mundo editorial não escapou às transformações profundas que a pandemia nos trouxe, pelo que o lançamento desta sequela possivelmente terá de ter algum patrocínio. Se quiserem ver o logotipo da vossa empresa/organização na capa, pois não hesitem em mandar-me uma mensagem, para falarmos sobre isso mesmo!

Assim sendo, e sem mais demoras, vamos ao…


Inferno Turco

Estávamos entre a segunda e terceira transferência embrionária quando, no dia 15 de outubro de 2018 criei um grupo de whatsapp para mim, Zé Pedro e Luís Alves no fabuloso hotel Crowne Plaza em Istambul, mesmo ao lado do Istanbul Akvaryum, e chamei-lhe “Inferno Turco”. Na altura achei que era uma denominação muito engraçada e adequada às dificuldades administrativas que estava a ter com os preparativos para esse transporte até então, mas não sonhava quão apropriado se viria a tornar o maldito nome.

Vejamos então como tudo começou. No dia 27 de setembro recebi uma chamada dum antigo colega de universidade, Pedro Encarnação, enquanto estava no intervalo de uma formação na Autoridade Nacional para a Aviação Civil (ANAC), durante a qual a Flying Sharks renovava o seu estatuto de ‘KC’, ou seja, known consignor ou ‘Expedidor Conhecido’. Estava lá a equipa toda, para além de mim: Rui Guedes e Luís Silva vieram dos Açores e ficaram em minha casa; David Silva e Zé Pedro vinham diariamente de Peniche, ao longo dos três dias de formação. No dito telefonema, o Pedro, agora com uma posição de envergadura na grandiosa Jerónimo Martins, explicava-me que precisava de mover aproximadamente 1200 salmões juvenis de uma aquacultura em Sveio, na Noruega, até ao ECOMARE, um polo de investigação da Universidade de Aveiro localizado no porto de pesca da Gafanha da Nazaré.

A seguir ao intervalo, aproveitei um momento mais lento na aula sobre segurança em carga aeronáutica para verificar no website Via Michelin os quilómetros que separavam Olhão (sede da TPO e base dos camiões que usamos) de Sveio. Multipliquei o resultado por dois para incluir o regresso e, a seguir, por dois euros e meio por quilómetro para o camião frigorífico que iríamos contratar à TPO e mais um euro e meio para o custo de rodagem da maravilhosa Audi de 2002, então com uns respeitosos setecentos e vinte mil quilómetros, que levaria a equipa até Sveio e, depois, novamente até casa.

Estes eram os nossos valores standard para transportes rodoviários, aos quais muitos clientes torcem o nariz por acharem demasiado caro. Normalmente respondo-lhes (educadamente) com: “Pois até pode ser caro, meu amigo… Mas connosco os peixes chegam todos vivos. Agora o caríssimo escolha se quer fazer isto baratucho e os bichos morrem pelo caminho, ou pagar mais e recebe tudo vivo…” Acrescentei os belos 23% de IVA, alguma consultoria para o tempo despendido pela rapaziada, eu incluído, e lá disparei o orçamento para o Pedro, partilhando a notícia com a equipa no fim de um dia de aulas intensas, repletas de exemplos de malvadezas que terroristas podem causar quando as empresas que movem carga aérea não tomam as devidas providências. A equipa recebeu a notícia com entusiasmo moderado, tal como eu, plenamente conscientes que missões destas são frequentemente recusadas devido ao nosso preço. Rematei a notícia indicando que o cliente queria efectuar este transporte nas próximas três ou quatro semanas e fomos para casa estudar a nossa lição, já que o teste final da formação seria na manhã seguinte.

Nessa mesma noite eu, Rui e Luís estudámos na minha sala, debaixo do calor abrasador que se fazia sentir em Lisboa, a bater nos quarenta graus. Arrependi-me mortalmente de não reparar o meu ar condicionado há mais de uma década, valendo-me da argumentação que era melhor assim porque promover a circulação do ar através de janelas abertas tinha uma pegada ecológica muito menor. Mas todos concordámos que, nessa semana, teríamos com agrado compensado o carbono gasto pelo belo ar condicionado tristemente encostado à box há mais de dez anos. De tronco nu e copos cheios de Papa Figos, para dar coragem, lá íamos estudando como os adultos estudam, que é tomando notas nos cantos dos extensos manuais de legislação aeronáutica, cuja consulta sabíamos ser autorizada – em formato impresso, não digital – no exame propriamente dito.

É curioso que, quando se é um estudante universitário chavalito e inexperiente, sofrem-se horrores a tentar perceber que diabo deve ser estudado e/ou memorizado antes de um exame. Mas quando se chega à idade adulta, abre-se um delicioso mundo de entendimento, que nos leva a olhar para os slides das aulas e saber exactamente o que é importante saber e o que constitui a famosa ‘palha’. O estudo consistiu, por isso, em organizar muito bem todas as notas das aulas e localizá-las devidamente, através de tópicos certeiros e post-its coloridos muito bem organizados, nas intermináveis páginas dos manuais repletos de legalês. O método foi tão bem-sucedido que, apraz-me informar, toda a equipa Flying Sharks passou o exame, no dia seguinte, com notas de excelência.

Por esta altura os estimados leitores estarão a pensar: “Então mas este artista não ia contar a história do transporte infernal de Istambul??” Calma. Já lá chegamos.

Na segunda-feira seguinte, dia 30 de setembro e, também, a semana em que eu e a Nina fizemos a nossa segunda transferência embrionária na Clínica IVI, recebi um telefonema curioso do meu amigo espanhol Alfredo Terrón com quem não falava há anos. Estava em Peniche, num intervalo entre aulas, e o ‘Pipo’ (alcunha que ganhou devido à semelhança entre o seu physique e uma pipa de vinho…) ligou-me a pedir se podia transportar-lhe umas raias desde um aquário em Istambul – o mesmo onde tinha entregado dois Airbus 300 atestados de peixes em dezembro de 2010 (!) – até ao novo aquário de Madrid, prestes a abrir no centro comercial Xanadu, à entrada da cidade. Terminou o telefonema com palavras semelhantes às do Pedro Encarnação apenas quatro dias antes, acrescentando a importância de o transporte ser efectuado em três ou quatro semanas no máximo, porque o aquário ia abrir ao público no dia 25 de outubro. Respirei fundo antes de lhe responder, três segundos depois, com o tradicional “Claro hombre! Já te mando el presupuesto!” e lá agarrei no orçamento que tinha preparado para o Pedro, alterei a distância para a que separava Olhão de Istambul e disparei-o para o Pipo, zangado com o malvado Artigo 14º do Regime de IVA para as Transacções Intracomunitárias, que isenta as ditas dos belos 23% que sabem sempre muito bem. Já agora, a maioria dos empresários teme o terrível IVA mas, na Flying Sharks, veneramos o bendito Imposto do Valor Acrescentado, uma vez que raramente o adicionamos às facturas, precisamente porque as vendas para o estrangeiro (dentro e fora da União Europeia) são isentas do dito e noventa por cento das nossas vendas são, por isso, isentas de IVA. Nos pouquíssimos casos em que facturamos um cliente português e, portanto, adicionamos IVA, raramente temos de o entregar ao Estado porque as nossas (muitas) compras incluem (naturalmente) IVA e, como tal, normalmente temos sempre de receber IVA do Estado e não pagar.

Se a memória não me falha, os telefonemas do Pipo e Pedro a aceitarem ambos os orçamentos, chegaram com uma diferença de minutos um do outro, o que me levou a comunicar à equipa que iam entrar umas belas massarocas na conta nos próximos dias, bastando para tal ir buscar umas raias a Istambul e uns salmões a Sveio. Nada de especial.

A equipa recebeu a notícia com o pânico habitual, que se dividia entre os tradicionais “Mas este gajo ‘tá doido?” e o meu preferido “Eh pá, isso não dá!” Ri-me por dentro da ansiedade que claramente afligia os meus comparsas, enquanto já me imaginava a acordar naquele dia solarengo e feliz em que o saldo da conta da Flying Sharks lhe permitiria saldar a (imensa) dívida que tinha para comigo e o meu fantástico sócio Telmo, ao que se seguiria um outro dia intensamente especial, em que poderia finalmente acordar sem nenhum valor pendente nos três cartões de crédito que carrego na carteira. Aliás, carrego apenas o primeiro, que tem o limite mais imponente, porque o segundo está na carteira do Rui, chefe da equipa açoriana, e o terceiro na carteira do David, chefe da equipa de Peniche.

Seguiram-se dias de alguma ansiedade, porque recebemos do Pedro, curador do aquário de Istambul, uma longa lista de procedimentos administrativos que deviam ser observados antes da partida. Por exemplo, a equipa de biólogos precisava de vistos, algo que assegurei online em minutos. Check! A equipa de motoristas da heróica TPO precisaria de vistos de motorista profissional, algo mais delicado e que teria de ser tratado pelos próprios na embaixada da Turquia em Lisboa. Depois de dois ou três telefonemas lá tínhamos a checklist de documentação que teriam de levar, sendo-nos indicado que, se os ditos vistos fossem pedidos de manhã, estariam prontos à tarde. O email do Pedro referia ainda um dozvola, termo que o Google indicava significar “autorização”, pelo que perguntei à TPO se tinha as devidas autorizações para circular fora da União Europeia. A esposa do dono, Suzy Sousa, quase que se riu ao telefone com a minha pergunta: “Ó João, mas tu achas q’a gente and’aqui a brincar? Pois claro que temos as licenças todas e mais algumas, homem!” E, com isto, não mais pensei no assunto. O Pedro referia ainda o temível ‘Carnet ATA’, uma espécie de passaporte que a carga que vai sair da U.E. – e entrar novamente – precisa de levar. Este documento garante que esta carga não paga impostos de exportação e importação, uma vez que efectivamente não vai ser comercializada nem vendida a ninguém. Elaborei, por isso, uma lista detalhada dos tanques de transporte, filtros, gerador, garrafas de oxigénio, químicos de estabilização da água e todo o equipamento de suporte, incluindo números de série e variadíssimos pormenores, com a ajuda da muito competente Sónia Morgadinho, da Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), que me guiou paciente e telefonicamente, pelo processo de registo e submissão de pedido online.

Na quarta-feira, dia 10 de outubro, percorri depois de jantar os trezentos e poucos quilómetros que me separavam da Póvoa do Varzim, onde ia pernoitar num hotel antes de dar duas sessões de formação em identificação de tubarões e raias aos funcionários da Docapesca local. Valeu-me o fantástico Waze, que me avisou de todos os radares na A1, uma vez que o cansaço extremo me obrigou a conduzir bem mais depressa do que o normal, não só porque queria chegar rapidamente ao destino, mas também porque uma condução mais energética é forma segura de combater o sono. Mas não repitam isto lá em casa, crianças! Enquanto isso, os pobres David e Zé preparavam o camião TPO para a partida para Istambul, já que estávamos marcados para chegar à antiga capital do império Otomano na segunda-feira, dia 15, precisamente duas semanas depois do telefonema do Pipo. Um verdadeiro recorde e milagre!

Entretanto, a equipa estava constituída e incluía, para além de mim, o Zé Pedro, nosso colega desde maio desse mesmo ano, e Luís Alves, o jovem e dinâmico presidente da APECE (Associação Portuguesa para o Estudo e Conservação de Elasmobrânquios) que, tal como eu, sente um apelo especial por tubarões e raias e não hesitou em responder afirmativamente quando lhe perguntei se queria vir connosco a Constantinopla buscar umas valentes raias. O Luís já me tinha acompanhado em vários transportes, nomeadamente numa bela passeata a Antibes e Biarritz, uns anos antes, para trazermos uns tubarões corre-costa aí nascidos, que depois entregámos nos aquários de Sevilha e Zoomarine.

Foi precisamente na Póvoa do Varzim, depois de uma manhã a explicar à rapaziada local a diferença entre as várias espécies de tubarões e raias que são desembarcadas nas lotas portuguesas, que finalmente comprei os três bilhetes de avião para Istambul, no website da Turkish Airlines, depois da Suzy me confirmar que os motoristas estavam finalmente com os passaportes – e vistos – nas mãos e a caminho de Istambul no camião devidamente carregado durante a noite anterior. A manhã foi intensa, porque ia vendo chamadas não atendidas da Suzy enquanto falava de tubarões e raias e lá tive de pedir desculpa aos meus estimados formandos, explicando o que se passava, para atender uma chamada telefónica em que a Suzi vociferava contra a menina da embaixada turca que teimava em dificultar-lhe a vida. Eventualmente aconselhei-a a seguir uma abordagem diferente, que consistia em implorar e rastejar por compreensão por parte da embaixada, explicando que os motoristas precisavam impreterivelmente dos ditos vistos, ou o transporte dos animais estava em risco. A estratégia rastejante lá funcionou e os rapazes estavam a caminho de Peniche na Audi Flying Sharks, que lhes emprestámos para tratarem dos vistos, uma vez que conduzir o tractor de um camião TIR no centro de Lisboa não é tarefa tão fácil quanto possa parecer à primeira vista.

Foi mais ou menos nessa altura que o Sérgio, chefe da TPO, me ligou a pedir para eu dar três mil euros em cash ao Filipe, um dos condutores, para que este pudesse comprar combustível durante o longo caminho que o separava de Istambul. O problema é que eu estava na Póvoa do Varzim e o Zé Pedro e Filipe, ambos em Peniche, tinham contas bancárias em bancos diferentes do da conta Flying Sharks (Caixa Geral de Depósitos), o que significava que não havia maneira de meter o dito cash nas mãos do Filipe. Contudo, lembrei-me das minhas transferências de vencimento mensal e do facto da conta do David ser na CGD. O problema é que o David ia ausentar-se uns dias e já não estava em Peniche. Mas lá o pus em contacto directo com o Filipe e encontraram-se algures perto de Torres Novas, terra do David, este já com três mil euros no bolso que transferi para a conta dele durante o pequeno intervalo da formação. E esta estava a ser só mais uma manhã de quinta-feira na vida da Flying Sharks.

Nessa noite, depois de uma tarde inteira a responder a emails da Turquia, Madrid e de outros clientes, relaxei em frente a uma bela francesinha com o antigo aluno e colega Rúben Pinho, entretanto aquarista no Sea Life do Porto, mas amigo desde a sua passagem pela ESTM e Flying Sharks. Depois de uma boa conversa, bem regada com finos que não paravam de chegar, lá faleci na cama do hotel da Póvoa, poucas horas antes da segunda e última sessão de formação, contratado pela Liga da Protecção da Natureza.

Acordei na sexta-feira, dia 12, com um telemóvel positivamente morto. Não havia reset ou botão que o reavivasse de forma alguma e meter-tirar o cabo de carregamento não dava sinal rigorosamente nenhum. Usei, por isso, o portátil para avisar por email a equipa que estava incontactável até resolver a situação. Terminei a formação enquanto ia vigiando o email no portátil, pelo canto do olho, e acelerei para a ESTM, em Peniche, logo a seguir, onde o Luís abria oficialmente a reunião anual da European Elasmobranch Association, EEA.

Infelizmente cheguei atrasado e perdi a grande apresentação do Gavin Naylor, cientista brilhante e director do Florida Program for Shark Research da prestigiada University of Florida. O Gavin era, também, amigo de longa data, dos meus tempos em que ia a todas as edições da reunião anual da American Elasmobranch Society, e já estava na minha mira para um destes eventos há vários anos. Lamentavelmente, para além do atraso me terimpossibilitado de ver a sua apresentação, passei a maior parte das apresentações restantes com a cabeça enterrada no portátil, enquanto dava resposta à torrente de mensagens que chegavam de todos os pontos do globo, particularmente de Istambul e Madrid, onde se acumulavam os detalhes de última hora que precisavam de ser afinados.

Admito, no entanto, que tudo era secundário em relação ao progresso dos dois motoristas da TPO, Filipe e Armando, que já tinham três mil euros no bolso e estavam praticamente a chegar a Barcelona, onde apanhariam o ferry para a cidade italiana de Civitavecchia. Essas vinte e uma horas de mar constituíam um belo corta-mato pelo Mediterrâneo, passando entre a Córsega e Sardenha, poupando os quase mil e trezentos quilómetros de condução por terra, pelo sul de França. Uma vez em Itália, no sábado, esperavam-lhes seiscentos quilómetros até Brindisi, mesmo na ponta do calcanhar da ‘bota’ italiana, onde embarcariam no ferry que, após oito horas, os colocaria no porto grego de Igoumenitsa, já no domingo à tarde. Seguir-se-iam mais seiscentos quilómetros até Alexandroupoli, a escassos quarenta quilómetros da fronteira com a Turquia, em Ipsala. Daí seria um pulinho de trezentos quilómetros até Istambul, onde estimámos que chegariam na segunda-feira à noite, mais ou menos à mesma hora em que eu, Zé e Luís também entraríamos no hotel, num carro que tinha acabado de alugar, durante a conferência, enquanto mais um jovem apresentava os seus resultados de investigação com elasmobrânquios a companheiros cientistas europeus. Era uma maratona que, a partir da origem em Peniche, no dia anterior, incluía mil e duzentos quilómetros até Barcelona, mais seiscentos em Itália depois do primeiro ferry, seiscentos na Grécia depois do segundo e, finalmente, os tais trezentos já em território turco, somando dois mil e quinhentos quilómetros de condução, para além das praticamente trinta horas de ferry.

Quanto ao regresso, eu e o Sérgio debatíamos freneticamente ao telefone se deveríamos repetir a mesma rota, que parecia estar a correr muitíssimo bem, ou vir por terra, via norte, que era a recomendação do cliente. Essa rota, contudo, incluía uns belos quatro mil quilómetros que, depois de sairmos da Turquia, atravessariam a Bulgária, Sérvia, Hungria, Áustria, norte da Itália, sul de França e, finalmente, metade de Espanha até Madrid, trajecto que estimávamos percorrer em cinco dias. Esse trajecto, contudo, atemorizava-nos não só pela distância, mas também pela Sérvia, território com reputação de ter alguns bandidos que, à moda do faroeste americano, bloqueavam a passagem de camiões com matrículas exóticas. Convenhamos que um camião de matrícula portuguesa e um enorme tubarão desenhado no lado da galera, com a inscrição ‘Flying Sharks’ e ‘LIVE SHARKS & RAYS’ na porta traseira, não era algo que passasse despercebido.

Partilhei estas considerações com a Nina, que ficou chocada com a informação e disse que nós, ocidentais, temos uma visão muito pobre e desinformada do Leste Europeu. Eu cá desculpei-me, dizendo que só estava a narrar o que amigos camionistas dos nossos camionistas lhes tinham dito… sei lá eu como são as condições de segurança rodoviária no território sérvio. Mas voltemos à tarde de sexta-feira em Peniche, onde a primeira sessão de palestras organizadas pelo Luís terminou com enorme sucesso, à qual se seguiu uma bela confraternização com um gigantesco porco no espeto. Minutos depois de fechar o portátil, umas valentes febras assadas envoltas em suculento pão regional deliciaram-me as entranhas enquanto bebericava uma imperial geladinha, sendo que não metia nada no bucho desde uns dois croquetes de, provavelmente, três euros e noventa e nove cêntimos cada um, comprados numa qualquer área de serviço algures entre a Póvoa do Varzim e Peniche. Lamentavelmente não consegui ficar mais de trinta ou quarenta minutos, depois de trocar dois dedos de conversa com colegas tubarólicos europeus que já não via desde a minha última reunião da EEA, também ela em Peniche, três anos antes.

Deviam ser umas nove da noite quando finalmente cheguei a casa, morto de saudades da Nina e ansioso com o diabo do transporte de Istambul, que metemos à frente do de Sveio porque este precisava de uma licença governamental que teimava em não chegar. Na realidade esse atraso calhou muitíssimo bem, ou teríamos de decidir qual dos dois transportes efectuaríamos primeiro, sendo que os dois clientes queriam ver o assunto resolvido ainda em outubro. Mas A Força veio em nosso auxílio, como sempre, o que levou os meus compadres a pensarem: “Isto está no papo! Com o João no transporte, a estrelinha dele não nos deixará ficar mal!” A minha estrelinha, contudo, não foi muito simpática com a nossa segunda transferência embrionária, efectuada no dia 4, porque a Nina recebeu o telefonema da IVI a indicar que o teste de gravidez que lá foi fazer no dia da conferência – infelizmente sozinha porque eu estava na Póvoa e em Peniche – tinha dado resultado negativo…

Decepcionados com esse resultado, tentámos afastar da mente o facto gritante de que a primeira, no dia 5 de setembro, tinha usado um embrião ‘fresco’, produto de gâmetas recolhidos apenas cinco dias antes, e não deu resultado. Esta segunda usava um embrião de ‘qualidade’ inferior e congelado após a extracção e crescimento inicial em setembro, mas também não tinha dado resultado. A nossa terceira tentativa seria novamente com um embrião que teria de ser descongelado mas que tinha uma classificação ainda mais baixa do que os dois primeiros, pelo que nos parecia que a probabilidade de êxito seria ainda mais reduzida.

À luz destes factos, perguntámos na IVI se poderíamos recolher mais gâmetas, mas explicaram-nos que a lei portuguesa não permite o descarte de embriões, ou seja, teríamos de usar os nossos – congelados – até ao fim, antes de podermos criar novos. Esta imposição tinha um cheirinho a crenças religiosas, facto que me fez ter vontade de virar a secretária do médico de pernas para o ar, porque poucas coisas me tiram mais do sério que ter crenças fantasiosas patetas a ditarem a forma como vivo a minha vida, tudo porque os ignorantes simplórios que estão no poleiro acreditam nas ditas fantasias. Bem sei que muita gente fica irritada quando abordo este tópico e me dizem que nós, ateus, temos de respeitar as crenças dos outros. Mas não respeito. Não posso respeitar adultos que acreditam numa criatura que é tão real como a Fada dos Dentes. Aliás, a Fada dos Dentes até acaba por ser mais real porque essa, pelo menos, deixa uns tostões debaixo da almofada quando um chavalito perde um dente. Já o outro amigo, alegadamente omnisciente e omnipresente, não sei de alguém que tenha acordado com cinco euros debaixo da tola, lá colocados por ele… Mas retomaremos este tópico numa ocasião em que for mais apropriado e não esteja com as entranhas tão cheias de fel, como era o caso naquela noite em que, exausto, tomava conhecimento de que ainda não era desta que íamos ser pais e, pior ainda, legislação polvilhada por asnicidade religiosa me impedia de maximizar a probabilidade de tal acontecer na próxima tentativa.

Foi com este novelo de pensamentos terríveis, num rodopio de frustração cadavérica, que acordei às quatro da manhã de Sábado e, depois de me revirar umas vinte (mil?) vezes na cama, achei que o melhor era martelar emails, em vez de arriscar acordar a pobre Nina, que já estava na habitual pré-depressão que a assalta sempre que me afasto mais do que algumas horas, desta vez com o bónus adicional de que a deixaria de ventre vazio, ao contrário do que nos tínhamos atrevido a desejar apenas uns meros dias antes. Admito que, se já houve uma época em que estas passeatas me arribavam o espírito, na época constituíam um enormíssimo sacrifício, motivo pelo qual a ida para a Póvoa do Varzim, apenas dois dias antes, foi adiada até praticamente a hora de dar início à formação. Mas naquela manhã de sábado, depois de três ou quatro horas de emails, lá voltei para a cama, medianamente mais tranquilo com o progresso da viagem dos motoristas, que já estavam em Itália, e enfrentei um sábado mais ou menos livre de sobressaltos, antes de rumar a Peniche para o banquete da EEA, onde seria o leiloador de serviço. O transporte e bebé teriam de esperar, porque, antes disso tudo, havia que emborcar uns canecos e vender umas tretas tubarólicas.

A pressão era enormíssima porque, três anos antes, o famoso leilão da EEA, também da minha autoria, arrebanhou mais de três mil euros, embora um quarto do valor tenha correspondido à minha famosa gravata Jaws que, a dada altura, concordei em leiloar, embora nem por um segundo fosse permitir que alguém ficasse com ela. O problema é que um artista da Swiss Shark Foundation começou a licitar contra mim, e lá tive de ir até uns escandalosos oitocentos euros para garantir que a trazia para casa! Mas vou já aqui pulverizar a (pequena) admiração que sentiram pela minha generosidade tremenda porque o meu plano secreto consistia em considerar essa quantia como mais um dos muitos donativos que o Flying Sharks Research Fund já atribuiu ao longo dos anos, somando praticamente setenta mil euros à data em que escrevo estas linhas! Afinal de contas, o objectivo do leilão é, precisamente, juntar verba para financiar a ida de estudantes à EEA no ano seguinte ao da realização do leilão, pelo que os oitocentos euros para proteger a minha pobre gravata e impedir que me saísse do pescoço, foram doados por esse fundo para uma excelente causa.

Em 2018, contudo, a atmosfera na sala de jantar do Hotel Soleil de Peniche, entretanto rebaptizado como ‘Star Inn’, era substancialmente diferente da de 2015, acima de tudo porque só conhecia uns vinte por cento dos presentes na sala, ao invés dos noventa e nove vírgula nove que conhecia três anos antes. Para isso muito contribuiu o simples facto de que esta conferência tinha sido organizada pelo Luís que, juntamente com a sua brilhante equipa, responderam paciente e diligentemente a todos os emails enviados por mais de uma centena de participantes, nas semanas e dias que precederam a conferência. Sentia-me como um estranho na sala quando me levantei para dar início ao leilão, mais ainda porque não havia microfone e tinha à minha frente mais de cem convivas, todos bem aviados de tintol e branco. “Isto promete!…” pensei eu, acolhendo de bom grado a assistência que a colega da Sociedade Holandesa de Elasmobrânquios, Irene Kingma, ofereceu. O leilão lá decorreu sem grandes loucuras, com duas ou três menções à minha lindíssima gravata repleta de tubarões, por parte dos mais afoitos que lá tinham estado três anos antes. Respondi-lhes (educadamente), enquanto o dedo do meio me esfregava uma comichão imaginária debaixo do olho e os restantes quatro permaneciam teimosamente para baixo… O recorde de 2015 não foi efectivamente batido, mas andámos lá perto, graças à sempre generosa participação dos investigadores mais velhos e, gosto de pensar, as minhas piadolas que foram entretendo os presentes. Cheguei a casa pela uma da manhã e garanti que o domingo era absolutamente tranquilo, já que a grande odisseia turca começaria no dia seguinte.

A segunda-feira, dia 15 de outubro, começou abruptamente pelas seis da manhã, com um telefonema do motorista Filipe, que não conseguia passar a fronteira grega que o separava da Turquia. Aparentemente havia um problema com o maldito carnet, que tinha levantado da Câmara do Comércio na semana anterior, mesmo a tempo de o deixar no armazém de Peniche e ser levado pelos motoristas quando deram início à viagem, segundos depois de o ter carimbado na alfândega de Peniche, com a assistência da profissionalíssima Elisabete Cunha. O grego do Filipe não era famoso e o inglês também não era muito melhor, mas lá se resolveu a situação quando passou o telefone à senhora grega da fronteira, que me explicou tranquilamente que o carnet tinha de ser carimbado na última alfândega da União Europeia e não havia alfândega na fronteira. A mais próxima estava a quarenta quilómetros, em Alexandroupoli, cidade por onde o camião tinha passado uma meia hora antes, por isso não havia muito mais a fazer do que ir lá com o camão, carimbar o carnet e voltar à fronteira.

Entretanto o meu voo para Istambul era a seguir ao almoço e permiti-me esboçar um pequeno sorriso, porque o plano estava efectivamente a desenrolar-se muito bem, uma vez que os escassos trezentos quilómetros que separavam o Filipe de Istambul, depois de entrar na Turquia, seriam conduzidos tranquilamente durante o dia. Nessa mesma noite, imaginava eu, estaria com os meus colegas Zé e Luís, acompanhados dos motoristas Filipe e Armando, a bebermos uns belos copos na grande cidade outrora conhecida como Constantinopla, apenas algumas horas antes de carregarmos as raias, no dia seguinte, e rumarmos a Madrid. Se o plano continuasse a bater tão certo como estava até agora, no Sábado estaria de volta a casa, depois de mais uma missão (bem) cumprida!

Já me tinha encontrado com o Luís e Zé no aeroporto quando, depois de deixarmos as malas no balcão da Turkish Airlines, tocou o telefone e reconheci o indicativo da Turquia no écran. “Mau!…” pensei para com os meus botões. Era a Gözde, transitária turca que estava a auxiliar-nos no processo administrativo de exportação há vários dias e que me perguntava incessantemente, ao telefone: “Onde está o dozvola?!”

“Mas qual dozvola??” perguntei eu, com uma pontinha de irritação… “Ouça lá, eu sou português e não faço a mais pequena ideia do que é um “dozvola”. Por favor, explique-me…”

A Gözde lá me explicou que era um documento de transporte essencial para a circulação do camião e que tinha de ser emitido pelo Ministério dos Transportes português. “Está bonito!….” pensei eu e respondi-lhe “Bom, eu estou no aeroporto, prestes a embarcar no voo para Istambul. Agora não consigo fazer nada. Amanhã trato disso.” Entretanto ainda tive tempo de ligar para a Suzy e explicar a situação. A Suzi respondeu-me “Esses turcos são uns totós! O Filipe leva a documentação toda e o camião está mais que autorizado a circular na Turquia!”.

Expliquei o que se passava aos meus comparsas de viagem e tranquilizei-os com o meu habitual “Não há-de ser nada. Tudo se resolve!” antes de embarcarmos no voo que, cinco horas depois, nos descarregou na fronteira entre os continentes Europeu e Asiático.

O voo passou bem rápido e, depois de passarmos o controlo de passaporte sem problemas nenhuns, levantei o nosso muito catita Nissan Qashqai, reparando de imediato que o aluguer estava limitado a mil quilómetros. Reparei também que os quilómetros adicionais seriam cobrados a oitenta e cinco cêntimos por quilómetro. Enquanto assinava os documentos que o rapaz da Sixt me metia à frente, ia fazendo uns cálculos de cabeça… Ora bem, se apanharmos os ferries no regresso, tal como os motoristas apanharam de Peniche para Istambul, temos dois mil e quinhentos quilómetros até casa e outros tantos para o carro ser devolvido, o que perfaz cinco mil. Tratam-se por isso de quatro mil quilómetros em excesso que, multiplicados por oitenta e cinco cêntimos cada um dá… Três mil e quatrocentos euros!! “Chiiiiiiiça!!” pensei interiormente, depois de confirmar no telemóvel o cálculo que tinha feito mentalmente, esperançoso que a mente me estive a adicionar um zero ao resultado. Pois claro que perguntei ao cavalheiro à minha frente se podia pagar uma taxa para garantir quilómetros ilimitados no aluguer, mas o inglês dele era tão forte como o meu turco e não nos conseguimos entender. “Não há-de ser nada. Tudo se resolve.” disse aos rapazes enquanto caminhávamos para o parque de estacionamento dos carros alugados.

Quando nos sentámos no espaçoso SUV a cheirar a novo, um dos rapazes elogiou a excelente escolha e perguntou “Então e como é que o carro volta a Istambul depois de entregarmos as raias em Madrid?” ao que eu respondi, com o meu tom paternalista que exibo quando me perguntam algo que me parece por demais evidente: “Oh amigo, isso está tratado há três ou quatro dias… Meti um post no Facebook a perguntar se alguém queria fazer uma passeata por terra até Istambul – e regressar por avião – e uma antiga aluna, agora condutora de ambulâncias, respondeu-me logo que o faria de bom grado com um outro colega também ele condutor de ambulância!”. Não convencidos, os meus comparsas perguntavam-me “Então mas eles podem passar a fronteira no regresso mesmo com o aluguer efectuado por nós?…” “Oh diabo…” pensei eu, mas respondi “Não há-de ser nada. Tudo se resolve.”.

O magnífico GPS da viatura levou-nos direitinhos ao hotel, que estava efectivamente colado ao grande aquário de Istambul, na área conhecida como Florya. Reconheci de imediato o espaço onde, em 14 de dezembro de 2010, descarregámos quarenta e quatro tanques com três mil e cem peixes e, no dia seguinte, retirámos as baterias dos ditos e organizámos a monumental quantidade de equipamento o melhor possível, antes deste ser carregado em contentores e devolvido às nossas instalações, então em Olhão. Escusado será dizer que, o que outrora fora um terreno baldio, cheio de lama e tanques despejados mais ou menos à maluca, era agora um moderno parque estacionamento em frente ao imponente Crowne Plaza de cinco estrelas. Duches tomados, emborcámos três gin-tónicos no restaurante do hotel que, graças à Força, servia refeições até à uma da manhã, sendo que metemos lá o pé uns quinze minutos antes.

A terça-feira, dia 16 de outubro, arrancou com um magnífico pequeno-almoço à beira do Mar de Mármara, um mar interior que só depois de passar Gallipoli se junta ao bem maior Mar Egeu, que por sua vez constitui parte do grande Mediterrâneo. O buffet local era extraordinariamente bem fornecido, mas, minutos depois de experimentar incontáveis iguarias locais, já estava a abusar do wifi do hotel e a conversar com a Gözde, explicando que os condutores vinham munidos de toda a documentação necessária. Pelo sim pelo não, a Suzy enviou-me a dita por email e lá estava, sim senhor, a ‘Licença de transporte internacional’, embora esta fosse em português. Entretanto, na noite anterior tinha sabido que o processo de passagem da fronteira tinha sido travado a dada altura até à manhã seguinte e só então estavam o Filipe e Armando a dirigir-se para Istambul, embora ainda tivessem de parar na alfândega.

“Bom, parece que hoje não saímos daqui com as raias…” e expliquei aos meus colegas, através do grupo whatsapp ‘Inferno Turco’, que o camião só chegaria nessa tarde. Lá continuei a tratar de mais emails e, entretanto, aproveitámos para ir espreitar as raias no aquário mesmo ali ao lado, conversando com os aquaristas e combinando todos os procedimentos para a preparação do camião, transporte e carregamento das bichas. Não havendo muito mais a tratar, sugeri à minha rapaziada que aproveitássemos aquele tempo morto para ir visitar Istambul e lá fomos, depois de colocarmos ‘Hagia Sophia’ no GPS.

Conduzir ao longo da lindíssima Avenida Kennedy, com o Mar de Mármara à nossa direita, foi bem mais tranquilo do que esperava. Antecipávamos uma condução febril, repleta de buzinadelas e veículos a meterem-se à nossa frente, mas, em vez disso, fomos presenteados com condução que poderíamos apelidar de normal, não muito diferente da que experimentamos nas artérias principais que dão acesso à capital lusitana. À medida que nos aproximávamos da zona histórica, cometi o erro de me manter na faixa da esquerda e lá entrámos no túnel Avrasya, que nos levou – sob uma imensidão de água – ao lado asiático da cidade, para fazermos inversão de sentido de marcha e voltarmos, novamente pelo túnel, para o lado europeu.

Ao chegar ao bairro Nurosmaniye, bem no centro da cidade, rapidamente nos apercebemos do erro que tínhamos cometido em levar para lá o carro, porque vivia-se nas ruas estreitas de Istambul, um caos comparável ao que se viveu na nossa terra há quarenta ou cinquenta anos. Carrinhas de entregas paradas em segunda fila, estacionamento caótico, total ausência de todo e qualquer tipo de cortesia automobilística, fizeram-nos sorrir e agradecer o facto de a pátria lusitana ter evoluído um bocado nas últimas décadas. Espero que este comentário não seja (mal) interpretado como paternalismo ocidental, porque efectivamente não o é. Trata-se de uma constatação porque, quer queiramos quer não, umas culturas modernizaram-se mais rapidamente do que outras. Nós, aqui no sul da Europa, não estamos no nível de uma Escandinávia no que diz respeito a múltiplas variáveis que encaramos hoje como essenciais ao bem-estar de uma sociedade. Por outro lado, conseguimos rastejar para fora do buraco onde várias décadas de ditadura nos mantiveram.

E já que abri a porta à resmunguice religiosa uns parágrafos atrás, aqui fica um comentário à escolha que as nações muçulmanas fizeram quando, há uns mil anos, decidiram que os líderes religiosos ditassem os seus destinos. Outrora dotadas de conhecimentos científicos e técnicos que lideravam a civilização humana, deixarem-se liderar por zelotas religiosos basicamente deixou-os ficar para trás, ao ponto de, actualmente, basta ligarmos a televisão – ou o pc – para podermos observar como as condições de vida europeias se distanciaram de forma gritante das que podemos observar nas nações que aderiram ao islão. Mas abandonemos novamente estas conjecturas, até porque este vosso criado é biólogo marinho e ditam os cânones apropriados que se deva manter no seu galho, certo?

De volta a Istambul, lá encontrámos um parque espaçoso perto de um terminal de ferries de passageiros na zona Yenikapi, a sudoeste do centro e onde deixámos o Nissan.  Lançámo-nos então numa busca pelos recantos escondidos de Constantinopla, pois claro com a app Endomondo ligada, porque não podia perder de forma alguma a oportunidade de lhe gravar uma bela caminhada em território tão exótico. Percorrendo a Yeniçeriler Caddesi em direcção a oeste (e fica já aqui a chamada de atenção para o facto de que, em turco, o ‘c’ é frequentemente cedilhado), terminámos na zona dos principais monumentos históricos, onde tirámos fotografias com maior fervor do que os turistas asiáticos locais, enquanto altifalantes debitavam “Allahu Akbar” nas orações da tarde e o público islâmico orava virado para Meca.

Fomos respeitosos durante todo o processo e até a Ninucha se absteve de passar qualquer barreira imposta pela sinalização religiosa abundante. A Ninucha, já agora, é o pequeno afia-lápis em forma de Dumbo que a Nina usava na escola primária e que tem ‘Nina’ escrito em caracteres cirílicos na cabeça, ou seja, ‘НИНА’. A Ninucha acompanha-me em todas as aventuras desde que conheci a Nina, no Verão de 2016, que é uma forma fofinha que encontrei de mitigar as saudades que apertam quando estou longe.

A seguir à zona religiosa e as imponentes Hagia Sophia e restantes catedrais, seguiu-se o ‘Old Bazaar’, positivamente labiríntico e demasiado confuso e barulhento para o meu gosto, mas intensamente apreciado precisamente pela diferença cultural que encerra. Terminámos o nosso passeio de três horas e picos com uma bela almoçarada num boteco simples e frequentado por locais, porque não há nada mais trágico do que viajar milhares de quilómetros para comer rodeado de turistas! Impressionámos os locais com o nosso “şükran”. Os nativos apreciaram o nosso esforço, mas corrigiram o nosso agradecimento por algo mais local, porque aparentemente o que usámos é bem mais arábico do que a Turquia. Pois claro que, para um trio de ocidentais, tudo o que fica entre o Danúbio e o Ganges é ‘árabe’, escapando-nos por completo a diversidade tremenda que esta zona excitante do globo encerra. No fundo, o nosso erro é equivalente ao dos americanos que nos agradecem com “gracias” e aquele ar pomposo de quem se acha o maior linguista do planeta.

De volta ao hotel, tive um update do Filipe, que tinha finalmente sido libertado da fronteira, mas estava há horas na alfândega. Em ambos os locais estava a ser assessorado por alguém da equipa da Gözde, mas dir-se-ia que o domínio de turco e português de cada um deles era praticamente inexistente, e isso não facilitava os processos. Preparei-me então para avisar os rapazes que o transporte na quarta-feira se estava a tornar cada vez mais duvidoso e foi neste momento que vi em risco a minha palestra no Sabugal ‘Tubarões, Melgas e Rock & Roll’ na segunda-feira seguinte, a convite do grande André Leonardo. Mas, desde que a viagem corresse bem, tudo correria pelo melhor porque, afinal de contas, um transporte sob a estrelinha da sorte de João Correia nunca poderia correr mal, certo?

O resto da tarde foi passado num grande braço de ferro com a Gözde, que dizia que a licença de transporte da TPO não servia por ser em português. Pois claro que me atirei ao telefone e liguei para a embaixada de Portugal, implorando que me traduzissem o maldito documento para turco ou, alternativamente, se me poderiam fornecer um documento que de alguma forma correspondesse ao igualmente maldito dozvola exigido pelas autoridades locais. O staff da embaixada, em Ankara, foi incrivelmente prestável e prontificou-se de imediato a ajudar, mas o processo demoraria pelo menos dois ou três dias.

“Oh diabo, daqui a dois ou três já quero eu ter esta história, a Grécia e meia Itália pelas costas!” pensei eu, repleto de optimismo. Foi nessa altura que li melhor as letras pequeninas da tal autorização de transporte lusitana e vi que só era válida nos países da União Europeia… “Filha de trinta trutas!…” vociferei por dentro, mas logo a seguir vi um “(1)” e a respectiva legenda no rodapé do documento explicava que a anotação “(1)” era referente à validade do documento em países com os quais a UE tem um acordo ao abrigo do artigo não sei quantos. Teclei o dito artigo no Google, rezando a todas as estrelas do céu para que o maravilhoso motor de busca me desse boas notícias e… deu, sim senhor! A Turquia, juntamente com a Noruega, Islândia e variados outros países, beneficiava de um acordo ao abrigo do qual os veículos podem circular livremente entre estes países. Passei esta informação à Gözde, que a recebeu com pouco entusiasmo e foi nesse momento que percebi que sem o maldito dozvola estava lixado, com um muito maiúsculo ‘F’.

Para terminar a tarde de terça-feira em beleza, chegou o telefonema do Filipe, a quem tinham acabado de dizer que o processo de entrada do nosso equipamento na alfândega, a escassos cinquenta quilómetros de Istambul, teria de continuar na manhã seguinte.

“Bonito serviço!… Já vi que nesta terra toda a gente pára de trabalhar às quatro ou cinco da tarde… Só espero que não seja assim quanto tivermos os animais carregados no camião…” conjecturei eu, tentando afastar esses pensamentos sombrios da mente. Lá mandei uma mensagem entusiasmada aos meus companheiros de viagem, cada um no seu quarto, e reunimo-nos para jantar no restaurante do hotel, desta vez frequentado por gente muito bonita, que muito contrastavam com os nossos três pares de calções de biólogos marinhos, modestas t-shirts e chinelos. O serão ainda incluiu uns belos emails e um cigarrito na varanda, enquanto tirava vídeos dos aviões já na ‘final’ da pista ali ao lado, com os trens de aterragem expostos e full-flaps. O cigarrito foi daqueles iQos, em que o tabaco só é aquecido e não queima, que diz que é menos prejudicial para a saúde. Trocadas algumas mensagens com a Nina, lá me enfiei na cama, a rezar fervorosamente para que o camião chegasse de manhã, para que então pudéssemos carregar as raias e nos pormos na alheta ainda na quarta.

Mas a quarta-feira chegou com mais atrasos da alfândega e a notícia de que o camião só chegaria à tarde. Para além disso, os esforços desenvolvidos com a embaixada não estavam a dar resultado e a Gözde também não aceitava de forma alguma os documentos que tínhamos. Foi nesta fase que comecei a teclar coisas do género “Oh pá, devias ter-me dito estas tretas enquanto eu estava em Lisboa e podia tratar delas. Agora faz mas é o teu trabalho e desenmerda-me lá isto!” de forma educada, claro. Mas dir-se-ia que o verbo “desenmerdar” não existe naquelas paragens, embora adorem abolir o prefixo “des” e usar – e abusar – do resto. Contudo, em mais uma visita à directora do aquário, Dilek Capanoglu – que conhecia desde a encomenda de 2010 – lá implorei pela sua intercedência – aproveitando para lhe afagar o ego ao elogiar o tremendo poder que aquela posição encerrava – e surgiu uma luz ao fundo do túnel… Entretanto o staff inteiro administrativo do aquário de Istambul estava empenhado em desenrascar os tugas, não sei se por gostarem de nós ou mais porque já se estavam a cansar da minha choraminguice e queriam era ver-nos pelas costas.

A secretária da Dilek, Zehra, desdobrava-se em contactos com tradutores de português para turco, mas os poucos que aceitavam o trabalho diziam que só poderiam pegar nele dali a “uns dias”. O colega Safak (que se pronuncia “Chafak”) dava uns toques em português – ou melhor, brasileiro – e tentava ajudar no que podia, mas o diabo da Gözde continuava a ligar-me a toda a hora a pedir o maldito dozvola e nada do que lhe enviava a satisfazia. Até que… A bendita Zehra levanta os olhos do computador e me diz, com o ar mais tranquilo do mundo “Pena vocês não quererem pagar a multa por não terem dozvola, que era tudo mais simples…”

“Alto e pára o baile!”, respondi eu, provavelmente com algo mais do género “Hold on and stop the dance!” E este inglês perfeitíssimo, hein??

“Ora explica lá isso melhor, fachavor…” pedi eu, antes da Zehra explicar que um pagamento de três mil euros por não termos o dito dozvola resolvia todos os problemas. Levei uma fracção de segundo a pensar “O cliente espanhol leva com mais três mil euritos na factura, quando fizermos um acerto final, e cá vai disto! Às tantas ainda meto mais uns pozinhos para compensar este sofrimento atroz e toma lá chouriços!”

Fechei negócio com a Zehra e liguei à Gözde a comunicar a nossa decisão. Notei que a facilidade com que puxava de três mil euros a apanhou desprevenida e não passaram mais de uns minutos até ela me ligar a perguntar como é que tencionava pagar. Enquanto me lembrava dos três mil que transferi para a conta do David e que ele, por sua vez, meteu na mão do Filipe, também me lembrei dos mil euros que levantei antes de rumar àquelas paragens – just in case – e, fazendo um cálculo rápido de cabeça, respondi-lhe “Olha, e que tal se a tua empresa pagar metade e eu pago a outra metade em cash? Assim que chegar a Lisboa transfiro-te os outros mil e quinhentos, pode ser?” e preparei-me mentalmente para um sonoro “Tu deves pensar mas é que nós somos tansos!” mas, em vez disso, ouvi um singelo “Ok, pode ser. Vamos mas é meter estas raias em Madrid sãs e salvas!”

“Eh lá, por esta é que eu não estava à espera!” pensei eu, esfregando as mãos de felicidade porque parecia que, finalmente, as coisas estavam a engrenar!

Foi mais ou menos por esta altura que o Filipe me ligou a dizer que estava a sair da maldita alfândega – onde esteve, recordemos, vinte e quatro horas – e estaria no aquário dentro de uma hora!! Partilhei todas estas notícias escaldantes com os meus comparsas e preparámo-nos para receber o camião e atestá-lo de água em todos os tanques, testar a filtração e todas as demais tarefas que precedem um belo transporte de longo curso.

Não passou efectivamente muito tempo até o camião aparecer e admito que me veio uma emoção ao canto do olho quando vi os fantásticos Filipe e Armando – que já conhecia de muitos outros transportes – a entrarem no parque de estacionamento do aquário onde, oito anos antes, tinha descarregado oito camiões similares na, então, maior encomenda de peixes vivos jamais feita no mundo! O novíssimo camião frigorífico da TPO, contudo, desta vez vinha decorado com o nosso impressionante logotipo, nome “Flying Sharks” e a nossa assinatura “Collections | Consulting | Conservation | Education”. É importante referir que esta decoração foi uma iniciativa do grande chefe da TPO, Sérgio Sousa, com quem já fiz dúzias de transportes. No entanto, normalmente usamos contentores de 40 pés open top, ou seja, cobertos por lona, condição necessária para que a chaminé da nossa ‘Geraldina’ (o gerador que comprámos para o tal transporte para Istambul em 2010) possa trabalhar sem intoxicar a bicharada dentro do contentor. Isto porque muitos dos grandes transportes Flying Sharks têm início no fabulástico Aquário de Porto Pim, no Faial, e com uma bela travessia marítima de quatro dias até Ponta Delgada e, depois, Lisboa.

Após os abraços da praxe, o Zé e Luís atiraram-se ao camião, enquanto eu fazia check-in do Filipe e Armando num quarto do luxuoso Crowne Plaza, cujas cinco estrelas de comodidades não passaram despercebidas aos nossos amigos Olhanenses, mais habituados a partilharem a espartana cabine do camião e lavarem o tronco com água do reservatório que este carrega. Disse-lhes para descansaram durante umas horitas, enquanto nós preparávamos o equipamento, e depois jantaríamos todos no hotel, antes de uma última noite em Istambul e o início da nossa grande aventura.

Os preparativos do camião levaram mais do que esperava, como é tradicional nestas andanças. Assim que entrei dentro da enorme galera, apercebi-me que um dos quatro tanques não tinha protein skimmer, maquineta essencial na remoção de proteínas e outros compostos orgânicos da água. Apesar de termos quatro unidades – e quatro tanques no camião – uma das maquinetas tinha claramente ficado em Peniche.

“Já começámos mal!…” pensei eu… Mas depois lá me acalmei e pensei que deixaríamos aquele tanque transportar uma menor quantidade de animais, reservando as densidades mais pesadas para os outros três, munidos do poderoso equipamento que, hoje em dia, nos acompanha em todas as viagens. A seguir atirei-me ao nosso estimado inversor, mánika ultra-poderosa que converte os vinte e quatro volts (contínuos) do camião em duzentos e vinte volts (alternados) que, por sua vez, nos dão luz no compartimento de carga do camião, movem as bombas que empurram a água através dos filtros de esponja e carvão activado, movem também a água através dos ditos protein skimmers e ainda dão sumo ao arejador e lâmpadas ultra-violetas dentro de cada filtro. O processo de ligar o inversor é delicado e deve ser feito com precisão, porque uma ligação errada significa um festival de faíscas e uma chave inglesa derretida como se tivesse sido atingida por um raio de Zeus. Caso estejam a interrogar-se como tenho um conhecimento tão profundo do que acontece quando fazemos uma ligação errada neste processo de montagem do inversor e conexão a seis baterias, tenho a responder que não digo nada sem ter um advogado presente na sala.

Atenção que o genial Rui Guedes engendrou um esquemático brilhante, segundo o qual temos um buffer – ou ‘tampão’, à portuguesa – entre as baterias do camião e o dito inversor de onda-pura, que custam o dobro, mas mantêm a corrente tão estável que até irrita. O tampão consiste em nada menos que seis baterias de cento e dez amperes cada uma – e uns belos quarenta quilos cada uma também – que ligamos duas a duas em paralelo, de forma a termos três blocos de vinte e quatro volts cada. Esses três blocos ficam entre as baterias do camião e o inversor e permitem, por exemplo, que o camião abasteça de gasóleo – processo demorado numa máquina de quase mil cavalos e que bebe uns belos mil litros de combustível numa passeata destas – enquanto as ditas seis baterias tampão mantêm todo o sistema de duzentos e vinte volts a bombar – sem esgotarmos as baterias do camião, porque ninguém quer ter de ajudar uma bisarma de vinte e cinco toneladas a pegar de empurrão. É claro que nada disto seria possível sem um glorioso corta-corrente entre as baterias tampão e as do camião, que tem de ser desligado sempre que o camião pára para abastecer. Rogo-vos que notem o uso propositado das palavras ‘pára’ e ‘para’ sucessivamente, para que os patetas que engendraram a remoção do acento da primeira se apercebam da cretinice da medida que propuseram.

Finalizado este momento de electrotecnia de ponta, passámos ao teste de estanquicidade dos filtros, uma vez que os tanques iam sendo atestados de água enquanto preparávamos o resto dos materiais. Quando o nível de água era suficiente para cobrir as bombas, dentro dos tanques, ligávamos as ditas e rezávamos a todas as divindades que pululam por aquelas paragens – que não são poucas – para que não permitissem fugas no equipamento. Pois claro que as divindades não apreciam a quantidade de tempo que passo a gozar com quem acredita nelas e recompensaram o meu comportamento herético com o que parecia ser as cataratas do Iguaçu num dos filtros e o Salto do Anjo noutro… Desligadas as bombas, havia que abrir os filtros e constatar, com profundo horror, que um deles tinha o o-ring danificado e o segundo nem sequer o-ring tinha. O o-ring é o anel de borracha que fica entre o filtro e a tampa, garantindo o isolamento. Sem o-ring entre estas duas peças é garantido que a água vai verter como a bexiga de um espectador num festival de verão. Respirei fundo e lembrei-me que a equipa penicheira tinha feito uma valente directa para montar o camião, uma vez que o Sérgio só o conseguiu estacionar à porta do armazém da Flying Sharks umas doze horas antes deste ter de partir para Istambul. Uma operação que, nos Açores, seria calmamente levada a cabo por uma equipa de quatro manos ao longo de uma semana, teve de ser enxertada por dois desgraçados em menos de doze horas, enquanto eu, na Póvoa do Varzim, ressonava durante as quatro horas que me separaram da viagem Fittipaldesca de Lisboa e a formação na Docapesca na madrugada seguinte.

Aproveitando o wifi do aquário, liguei ao David, em Peniche, só para confirmar se tinham vindo o-rings extra e onde estavam, uma vez que não os conseguíamos localizar. O David ia dando explicações, enquanto procurávamos em todos os sacos e saquinhos de equipamento, mas os o-rings teimavam em não aparecer. Lá desliguei, chateado da vida, mas a pensar com os meus botões que o desempenho dos rapazes tinha sido heróico, apesar das malditas fugas nos filtros. Felizmente que o staff técnico do aquário ainda por ali andava, o que nos permitiu, entre gestos e um exercício de mímica que venceria qualquer noite de charadas, implorar aos amigos turcos por bocados de borracha, que usámos para construir novos o-rings. O resultado não foi brilhante mas entre fita-cola isoladora dentro e fora dos filtros, umas belas marretadas para apertar bem as tampas e, claro, uns bons furos de berbequim nas tampas dos tanques, estrategicamente colocados mesmo em baixo dos (muito poucos) pingos que teimavam em cair, lá se resolveu a coisa e demos por encerrada a preparação do camião, que contava com quatro tanques, sete filtros (ai o maldito skimmer em Peniche, em vez de Istambul, que tanto me enervava…), fugas de água vestigiais, cinco garrafas de oxigénio de cinquenta litros com duzentos bares cada uma e variado equipamento, ferramentas, carbonato e bicarbonato de sódio para tamponar o pH, Amquel para destoxificar a amónia, testes químicos e toda uma série de parafernália que nos assistiria a manter a qualidade da água dos quinze gaviões do mar, Rhinoptera marmoratus, em condições tão boas – ou melhores – do que aquelas em que se encontravam.

Finalizados os preparativos, só restava tomar uma bela ducha e reunirmo-nos com o Armando e Filipe para uma animada jantarada no restaurante catita do hotel, antes de martelar mais uns mails e dormir num estado de ansiedade profundo, morto de saudades da Nina e temendo pelas dificuldades que nos poderiam aparecer pela frente. Creio que o meu último pensamento, nessa noite, foi algo ingénuo como “Com tantos problemas à partida isto, agora, daqui p’ra frente vai ser sempre a’viar! Se correr tudo bem, chegamos a Madrid no domingo à noite e na segunda-feira aí vou eu para o Sabugal dar uma bela palestra e ganhar mais uns trocos valentes, para além de dar início a uma excelente parceria com o muy fantástico André Leonardo, que não pára de “Fazer Acontecer”!

Na quinta-feira, dia 18 de outubro, acordei cedo e tomámos – os cinco – um belo pequeno-almoço, daqueles de quem se prepara para uma odisseia digna de um tomo de pelo menos quinhentas páginas! Eram umas oito horas da manhã quando comecei a melgar a Gözde:

“Então, quando posso carregar as raias e pôr-me a mexer??” Ela ignorou-me até às nove – porque, na Turquia, as pessoas não recompensam comportamentos incivilizados – e só então me disse que apenas poderíamos sair depois da inspecção veterinária, que deveria ser lá para as onze. “Iiiiiiiiiiiirra, que estes gajos são leeeeeeentos!!” gritei interiormente, frustrado! Avisei a rapaziada que tínhamos novo atraso pela frente e fui dando cabo de todos os emails que iam, entretanto, aparecendo, que não eram poucos. Um deles era do Pedro Encarnação, que perguntava quando podíamos trazer os salmões de Sveio para Aveiro. Respondi-lhe “Deixa-me cá meter estas raias em Madrid e logo nos atiramos a esse, ok?”

Lá para as dez recebi no whatsapp a mensagem mais antecipada dos últimos dias: “Inspecção veterinária concluída. Podes carregar as raias e partir. Boa viagem e que corra tudo bem!” Tive direito a um smile no fim e tudo e, saltando de alegria, paguei a conta extraordinária na recepção do hotel, que incluía os nossos três quartos durante três noites, o do Filipe e Armando, três jantaradas e um número indecente de gin tónicos. Até estremeci quando cliquei no ‘ok’ da maquineta do VISA e rezei interiormente à Força para que não nos atirasse com mais obstáculos inesperados pela frente.

À medida que carregávamos as raias combinei com a rapaziada do aquário que um deles levar-nos-ia à alfândega de Istambul, onde teríamos de entrar no camião e seguir nele até à Grécia, porque só aí poderíamos alugar um carro. Isto tudo porque nos disseram que não seríamos autorizados a passar a fronteira num carro alugado. Admito que esta notícia não me perturbou muito, porque a perspectiva de pagar os tais quatro mil quilómetros multiplicados por oitenta e cinco cêntimos estava a encher-me de azia desde o momento em que tinha levantado o carro no aeroporto. O plano incluía deixarmos o carro no aeroporto enquanto o camião, já carregado, ia avançando para a alfândega e um aquarista simpático recebeu umas liras valentes – mais um tanque atestado – para nos pseudo-uberificar até ao local onde, esperávamos, a nossa documentação e três mil euros nos punham a mexer dali para fora numa questão de minutos. Qashqai entregue e já no carro do aquarista, a dada altura este encostou na berma da estrada e o meu turco perspicaz disse-me que a conversa que estava a ter ao telefone era a pedir instruções sobre como chegar à alfândega, onde já estava o camião.

Confesso que, por alguns segundos, deixei-me envolver pelo pensamento feliz de que, daí a momentos, íamos ver o camião surgir no espelho retrovisor, já com os procedimentos alfandegários concluídos. Seria então apenas uma questão de saltarmos para dentro do bicho e rumarmos à fronteira, a uns escassos duzentos e poucos quilómetros. O nosso plano maquiavélico consistia então em passar a fronteira com a Bulgária – única que permitia a saída de animais vivos – ainda nessa mesma quinta-feira e alugar um carro em Alexandroupoli, na Grécia, cidade a escassos cento e poucos quilómetros da dita fronteira. Tudo isto deveria ocorrer algures na madrugada de quinta para sexta-feira e o dia seguinte seria passado a percorrer os seiscentos quilómetros gregos até Igouimenitsa, onde teríamos de esperar pelo ferry das onze e cinquenta e nove da noite. Acordaríamos em Itália no Sábado de manhã e embarcaríamos no ferry de Civitavecchia ao final da tarde, para desembarcarmos em Barcelona na noite de domingo. Lá pelas quatro da manhã estaríamos em Madrid e, esperava eu, veríamos o amanhecer de segunda-feira já a passar a fronteira de Badajoz, poucas horas antes de rumar ao Sabugal para a dita palestra. Era um plano audacioso e que não tinha nada para correr mal…


Alfândega filha de trinta truta

Chegámos à alfândega por volta do meio-dia e o nosso aquarista parou o carro num estacionamento subterrâneo. Depois de quinze ou vinte minutos à espera, sem percebermos muito bem que se passava, lá apareceu um gajo com uma pasta cheia de papéis debaixo do braço. “Ah, eis o nosso intrépido despachante alfandegário, que vai tratar de tudo numa questão de minutos!” disse eu ao Zé e Luís. Despedimo-nos do aquarista e fomos atrás do despachante, que desconhecia o complexo conceito de ‘sorrir’.

Entrámos então num monumental edifício com um hall tão repleto de guichets como de despachantes e camionistas que circulavam de um lado para o outro em passo apressado, como se fosse um daqueles ninhos de formigas que tanto apreciamos nos programas dedicados à natureza. Não me escapou o nome do restaurante ‘Doy Doy’ assim que entrámos, nem o facto de toda a gente fumar lá dentro. “Isto está bonito, sim senhor…” pensei com os meus botões, enquanto rebocava uma enorme mala, felizmente equipada com duas belas rodinhas. Poucos minutos depois vimos o Filipe, que nos acompanhou até ao camião através de um parque onde seguramente estavam estacionados pelo menos mil camiões. É importante frisar que não estou a exagerar neste número que, muito provavelmente, está severamente subestimado. O Filipe disse-me então que passou lá um gajo e mostrou-lhe o número ‘quatro’ no telefone. Não percebemos se seríamos atendidos dali a quatro horas ou às quatro propriamente ditas, mas tanto fazia porque a diferença era negligenciável.

Depois de caminharmos uns belos dez minutos, o que, de acordo com o meu Endomondo, correspondeu a pelo menos um quilómetro, lá vimos o camião e Armando, pelo que passámos de imediato à acção e ao primeiro – de muitos – checks da qualidade de água e sistemas. À medida que o tempo ia passando e não aparecia ninguém, eventualmente lá fui com o Filipe até ao escritório da Emirler, parceiro da Sega Logistik (empresa da Gözde) na alfândega de Istambul. Deparei-me com uma sucessão de pequenos gabinetes muito semelhantes ao espaço análogo no terminal de carga do aeroporto de Lisboa, onde corredores infinitos exibem portas de transitários, despachantes, agentes de linhas aéreas e afins. Como os três ou quatro turcos que lá estavam me ignoravam, lá me meti à frente de um e, apontando para o logotipo da Flying Sharks na minha polo, consegui explicar-lhes que era o chato do biólogo com as raias. E foi aí que começou um calvário que durou bem mais do que eu estava à espera… Um chouriço de maus modos desatou a berrar comigo enquanto repetia “próhblêhma dozvola”. Expliquei-lhe – em inglês lento, compassado e polvilhado com gestos – que o ‘próhblêhma dozvola’ não era problema nenhum porque tínhamos concordado pagar os três mil euros de multa. “That problema is fixed, maluco!” repetia eu, enquanto o Filipe – que já tinha passado uma noite na fronteira e outra nesta mesma alfândega – metia as mãos na cara e dizia “Só saímos daqui amanhã…”

Fiz aquela minha cara “Estes ursos não sabem com quem se estão a meter!” e liguei à Gözde, furioso, a perguntar que diabo do “próhblêhma dozvola” é este, uma vez que já tínhamos acordado que se resolvia tudo com os três mil euros. Ela pediu-me para passar o telefone ao chouriço mal-encarado, que lá manteve um diálogo tão turco quanto furioso e, no fim, devolveu-me o telefone e mandou-me passear com as mãos. A Gözde disse-me para ter paciência, que o caso estava quase resolvido. Entretanto já deviam ser umas três horas e, como nos tinham dito que nada aconteceria até às quatro, fomos morder uns comes deliciosos, porque o pequeno-almoço do Crowne Plaza já ia longe e a distinção do local inibiu-nos de embrulharmos em guardanapos um pequeno farnel com as abundantes iguarias locais. O interminável parque de camiões só oferecia mais duas opções para além do Doy Doy, por isso abancámos no mais próximo da nossa máquina, que tinha de disponibilizar power à filtração e, por isso, trabalhava incessantemente. No boteco, frequentado por camionistas que partilhavam o nosso infortúnio, atestámos os pratos de carne, feijões e vegetais, e retirámos bocados de pão de uma enorme caixa de plástico que circulava por todas as mesas. Paguei com VISA, o que não me deixou de surpreender, e rapei o molho todo do prato com os bocados de pão que consegui arrebanhar. Seguiu-se uma cafezada e um cigarrito, para acalmar os nervos, enquanto caminhava mais uma vez os catorze mil quilómetros que nos pareciam separar do escritório da Emirler. Como antes, voltaram a despachar-me com o “próhblêhma dozvola”. “Ai os tomates!…” disse eu, subitamente fulminado por uma necessidade intrigante de falar em legumes, que tive de partilhar com a Gözde, cujo tom de voz já expressava mais vontade de me ver em Madrid, com as raias, do que eu.

Voltou a falar com o chouriço mal-encarado que, mais uma vez, gesticulou e esbracejou, passando novamente o telefone para mim. Foi só aí que se tornou claro o novo problema que nos afligia: os três mil euros seriam pagos na fronteira e não na alfândega; o problema é que, quando chegássemos à fronteira, a tesouraria da dita já estaria encerrada e só poderiam receber o dinheiro na manhã seguinte. Expliquei-lhe, com o inglês mais basilar que consegui exprimir, que isso condenava-nos a perdermos o ferry em Igoumenitsa na sexta-feira à noite, o que atrasava a operação vinte e quatro horas. Era uma condenação das raias à morte, já para não falar de me obrigar a perder a palestra que tinha prometido ao André, no Sabugal. Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, a filtração estava a tratar tão exemplarmente bem da água -que não parava de melhorar desde que tínhamos saído do aquário – que percebi de imediato que um dia de atraso não colocaria minimamente a vida dos bichos em risco. Contudo, estávamos a lidar com animais vivos e a facilidade com que aqueles caraças falavam em “Só dá amanhã…” estava-me a enervar e não era pouco… Em tantos transportes que já fiz, nunca vira tamanha displicência pela vida animal… Para esta tropa, transportar animais vivos ou rolos de papel higiénico era rigorosamente a mesma coisa.

Caminhei a mini-maratona de volta ao camião, onde partilhei novamente as notícias com a rapaziada. Seguiram-se algumas horas de bastante ansiedade, porque de repente multiplicavam-se os telefonemas da Gözde… Primeiro pediu-me as matrículas do camião e reboque, algo que já lhe tinha enviado do hotel dois dias antes; depois pediu-me a rota exacta que o camião ia percorrer, algo que também já lhe tinha enviado; a dada altura pediu-me o código da alfândega de Madrid, que era necessário para colocar na documentação; foi aí que perdi completamente a compostura e elevei a voz: “Eh pá, tu só podes estar fucking kidding me! Então agora é que me estás a pedir estas coisas?? Porque diabo é que essa documentação não foi tratada antes de carregarmos os bichos??” berrava eu ao telefone, incrédulo com tamanha incompetência. Foi aí que ela me explicou que a dita documentação só era possível emitir depois de o aquário emitir uma factura num sistema online – uma espécie do nosso ‘efatura’ dentro do portaldasfinancas.gov.pt – e o dito sistema estava em baixo. “Unfuckingbelievable!” soprava eu, enquanto só me restava esperar pelo desbloqueio do maldito ‘sistema’ para que o resto da documentação fosse tratada…

Entretanto apareceu um dos nossos transitários – de sapatos bicudinhos, uma prática corrente no local – que vinha acompanhado de um tipo de ar severo e oficial. “É o veterinário!” pensei eu. Mas não. Era o gajo da ATA lá do sítio, que vinha inspecionar o equipamento descrito no carnet, para garantir que o equipamento que ia sair do país era o mesmo que tinha entrado. Reviu tudo de uma ponta à outra, incluindo o número de série – coberto de ferrugem – da pobre Geraldina, que tantas e tantas horas de electricidade já nos disponibilizou. Mas um bocado de lixa clarificou a questão e o inspector-carnet lá se pisgou satisfeito. O agente dos sapatos bicudinhos escreveu no telemóvel 18:45 e mostrou-me. Deviam ser umas cinco da tarde, por isso a coisa não era assim tão má.

Entretanto ligou-me novamente a Gözde. O grande problema do momento continuava a ser o pagamento dos três mil euros e o facto da tesouraria da fronteira estar fechada quando lá chegássemos. Repeti-lhe o que tinha dito antes: “Resolve isso, não quero saber como.” Mas ligou de volta com novo problema, que era a inspecção alfandegária em Madrid. Entretanto liguei para o Pipo a implorar-lhe o tal código da alfândega de Madrid. O homem não atendia e sabia que a minha net telefónica devia estar prestes a dar o berro, porque liguei para a MEO a pedir para me aumentarem o plafond de comunicações extra-plano, mas a minha experiência em situações similares dizia-me que o meu pedido – apesar de deferido ao telefone – não ia dar em nada. E foi aí que me lembrei de uma fantástica amiga na alfândega de Peniche e disse à Gözde: “Olha, mete aí ‘Peniche’ como local de descarregamento.”

“Então mas os animais não vão para Madrid??” respondeu ela. “Mete Peniche.” Respondi eu. “Fica à tua responsabilidade.” Disse-me ela, a achar que me ia intimidar. “Trata mas é dos papéis, que estamos aqui há umas seis horas, pá”! respondi eu, cada vez com menos paciência para aquele circo de palermas.

Já estava a anoitecer quando apareceram os veterinários, que viram as raias, tiraram selfies com elas e saíram dali muito satisfeitos, já que os animais tinham super bom aspecto e a documentação sanitária estava milagrosamente correcta. Entretanto telefona a Gözde a dizer que o sistema estava desimpedido, o aquário tinha emitido a factura e a documentação estava tratada. Disse-me ainda que o chefe dela tinha jantado com a chefe da fronteira e conseguiu convencê-la a deixar lá alguém até mais tarde, de propósito para aceitar os nossos três mil euros independentemente da hora a que lá chegássemos!

“Aleluia!!” de repente todos os problemas pendentes estavam resolvidos e disse-me que sairíamos dali dentro de MINUTOS! “That is extremely good news! Thank you very much!” agradeci-lhe eu e retirei-me para dentro da cabine do camião, onde eu, Zé e Luís nos aglomerávamos na cama por trás dos bancos onde o Filipe e Armando estavam sentados. Tomámos todos o cuidado de nos descalçarmos antes de entrar, hábito que os motoristas observavam e, pois claro, não queríamos macular o interior absolutamente cristalino do poderoso maquinão. Entretanto já era noite escura e permitimo-nos um ligeiro momento de boa disposição, porque parecia que estaríamos a sair dali para fora a qualquer segundo! E foi aí que ouvimos aquelas que se tornaram rapidamente nas palavras mais odiosas da história da comunicação verbal: um outro agente – também de sapatos bicudinhos – apareceu com um monte de papéis e proferia, pois claro, “próhblêhma dozvola!!” enquanto esbracejava muito!

Desci calmamente da cabine e expliquei-lhe que o caso estava mais que tratado e que pagaríamos os três mil euros na fronteira, onde estava alguém propositadamente à nossa espera para tal. Mas o tipo percebia tanto inglês como eu de turco, pelo que o segui até ao escritório, enquanto caminhávamos todos em passo muito apressado atrás dele. O Luís e Zé seguiram-me e preparámo-nos mentalmente para a pior notícia possível, mas nada nos podia preparar para o que nos disseram.

Eram quase oito da noite quando o Sapatos Bicudinhos, num outro escritório diferente daquele onde tinha estado várias vezes antes, me levantou nove dedos com as duas mãos. Eu percebi de imediato “Ok, podemos sair daqui às nove…” mas algo me dizia que o recado dele ia ser acompanhado de uma reviravolta da mão no ar que, claro está, pretendia indicar as próximas nove horas. “No fucking way! Listen, all the fish will D I E! Do you fucking understand?? They will all fucking DIE!” expliquei eu, seguro de que tamanha ameaça os faria recuar. Mas não. O tipo encolhia os ombros e mostrava-me num relógio de parede as nove horas, claramente da manhã seguinte. Entretanto ligou a Gözde, que atendi no corredor. O que se passava era que os três mil euros afinal tinham de ser pagos ali, na alfândega, só que a tesouraria já tinha fechado.

“Ouve, Gözde, vocês ainda não perceberam que isto não é uma carga normal… Os bichos vão perder o ferry na Grécia, morrem todos antes de chegar a Madrid e eu quero ver quem é que paga esse prejuízo aos meus clientes, porque eu não vou ser de certeza absoluta! Tu arranja maneira de consertar isto, pá! Fala com o teu chefe, fala com quem quiseres, mas resolvam-me isto!!” Ela desligou em tom seco, a dizer que ia falar com o chefe. Enquanto esperava, sentei-me no balcão do escritório dos agentes, reparei nos cinzeiros cheios, apesar dos sinais de proibição de fumar nos corredores ladeados de escritórios, e acendi mais um iQos, enquanto debitava um incrivelmente sentido discurso a elogiar a extraordinária competência dos rapazes, o quão bons eles eram no seu trabalho e estava ali uma excelente oportunidade de o provarem, resolvendo aquela crise. Mas o meu discurso foi recebido com algumas mensagens que debitavam em turco para o telefone, que as traduzia para inglês e que se resumiam a “Às nove amanhã de manhã.”

Esse cenário foi confirmado pela Gözde, que me disse que ia alguém ter connosco levar os mil e quinhentos euros da Sega Logistik e que eu deveria dar a massa ao agente deles na alfândega. Nunca percebi muito bem quem era o agente deles, porque falei com meia dúzia de manos durante a tarde toda. A dada altura o Sapatos Bicudinhos exibiu um molho imenso de notas, sinal de que já tinha recebido a parte da Sega. Percebi que precisava do resto e lá caminhámos mais uma vez para o camião, onde já tinha combinado com o Filipe que usaria quinhentos meus mais mil dele – ou da TPO – e lá meti mil e quinhentos euros nas mãos do turco. Tirei uma selfie nossa e mandei-a à Gözde, pelo sim pelo não, que ainda me mandou uma mensagem a dizer “Não dês o dinheiro a ninguém para além do nosso colega!” ao que respondi “Está aqui a fotografia do gajo a quem o dei. Espero que seja este. Até amanhã.”

A última tarefa do dia foi pedir ao Sapatos Bicudinhos para nos arranjar uma tomada eléctrica, porque o camião estava a trabalhar ao ralenti desde que tinha chegado à alfândega, umas dez horas antes. Foi o porteiro da alfândega, que controlava a cancela que permitia a saída daquele reduto de burocracia infernal, que abriu uma ponta da janela do cubículo onde jogava qualquer coisa no computador e lá ligámos a nossa filtração na mesma ficha tripla onde tinha o PC ligado.

O motor do camião pôde, finalmente, descansar e a nós só restava ir inspeccionar novamente as raias e qualidade da água, antes de irmos morder algo. O diabo é que, depois de algumas voltas, apercebemo-nos que estavam todos os botecos fechados à excepção do mesmo onde tínhamos almoçado, onde o dono apanhou o último prato de carne e vegetais, deixando cinco gandulos com pouco mais de umas pratadas de restos de feijões já muito espapaçados e bocados irregulares de pão já muito amassado no recipiente de plástico. Pois claro que comentámos que feijões era o prato ideal para cinco maduros que iam partilhar uma cabine de camião a noite toda e lá conseguimos gracejar com a nossa pouca sorte, enquanto raspávamos azeite do prato com os bocados de pão que conseguíamos juntar dos vários recipientes em várias mesas. Sistemas e bichos vistoriados, só restava mesmo abancar na cabine. Eu e o Luís na cama de baixo, os pés de cada um virados para a cabeça do outro; o Zé na cama de cima e o Filipe e Armando nos seus respectivos bancos. E assim pernoitámos as mais longas e penosas horas da minha vida, logo após o envio da dolorosa mensagem à Beatriz, companheira do André Leonardo, avisando-a que a maldade turca impedir-me-ia de dar a palestra motivacional com a qual me tinha comprometido na segunda-feira, no Sabugal. Amaldiçoando a minha má sorte, lá fechei os olhos, depois de tirar os óculos e metê-los em local seguro, onde não rebolasse acidentalmente para cima deles, e tentei dormir umas horas.

Eram seis ou sete da manhã de sexta-feira, dia 19 de outubro de 2018, quando me esgueirei lentamente para fora do camião, com cuidado para não acordar mais ninguém. Já tinha a pasta de dentes e escova na mão e dirigi-me à casa de banho, onde me lavei debaixo dos braços, cara, dentes, pescoço, o melhor que pude. Depois pedi um descafeinado cheio, perante o ar de “Mas o que é que este quer??” do dono do café, que já se estava a habituar à nossa presença. Lá bebi um café normal numa mesa cá fora, apreciando intensamente mais um cigarrito, concentrado na ideia de que só esperava que a combinação não me forçasse a correr para a casa de banho, porque aquele momento de paz era o primeiro numa longa odisseia que já ia em quase vinte e quatro horas, apesar de ainda só termos percorrido pouco mais de cinquenta quilómetros e tínhamos todo o continente europeu pela frente…

As minhas entranhas colaboraram e deixaram-me saboreando o momento até ao fim, só atacando minutos depois com a ferocidade que se segue a um episódio de tranquilidade intensa. Abençoadas senhoras da limpeza turcas, que tinham acabado de passar pela casa de banho e a deixaram imaculada, atestada de papel novinho em folha e com cheirinho a limpa. Valha-nos a Força nestes pequenos momentos de singela felicidade.

Ainda não eram nove horas e já estava à porta da Emirler com cara de poucos amigos. Lá apareceu um dos chouriços com quem tinha lidado no dia anterior e não me escapou a cara de azia com que ficou quando me viu à porta. Vinha de café na mão e preparado para o bebericar com tranquilidade. O chato do tuga-das-raias lixou-lhe os planos todos. Mas estes palermas não são de modas e fez-me sinal para esperar cá fora, antes de entrar lá dentro. Mas eu também não sou de modas e disse-lhe “We need to hurry! I want to leave FAST!” enquanto apontava para o relógio de pulso que não tenho. Entrei para dentro do gabinete com cheiro a fumo entranhado e fiquei a olhar para ele, enquanto bebia o café. Depois lá o acompanhei não sei bem onde e percebi que íamos à porcaria da tesouraria quando sacou de um molho de notas com uns belos sete centímetros de espessura, uma vez que três mil euros são quase vinte mil liras e o tipo só tinha notas pequenas. Enquanto uma senhora já com idade de reforma recebia o dinheiro e ia passando um papel, ocasionalmente parava e dizia-lhe qualquer coisa, com aquele tom de que algo não está bem. Não escondo que o coração me batia a duzentos mil à hora e, de cada vez que o processo parava, só tinha vontade de chorar, partir-lhes uma cadeira na cabeça, ou fugir dali para fora no camião, rebentando com a porcaria da frágil cancela que nos separava da liberdade. Mas o que mais me atemorizava ainda era o facto de que o enorme edifício ia lentamente começando a encher-se de gente, o que me fazia estremecer só de pensar que haveria mais paragens a seguir àquela. E havia.

Quando saímos da tesouraria, com mais um papel na mão, perguntei ao gajo “Então, podemos ir??” com aquele sinal internacionalmente conhecido em que uma mão dá uma palmada na outra, antes de mandar uma carga imaginária de sal para trás das costas. Mas o tipo dizia-me que não com a cabeça e balbuciava “Wait.”, que era a única palavra que parecia dominar no vasto léxico anglófono. Dali ainda fomos a um outro gabinete, onde nos pediram “Passport!” e percebi que era o do condutor. “Ai a minha vida!…” disse, antes de acelerar e tentar percorrer os quilómetros que me separavam do Filipe no passo mais rápido que consegui. Lá cheguei, finalmente, e pedi-lhe para trazer passaporte e a pasta com todos os documentos do camião, temendo que os animais selvagens do último guichet me pedissem mais outra coisa qualquer quando lá chegasse. Pois claro que, quando lá chegámos, o nosso Emirler patetinha já se tinha pisgado, por isso pedi ao Filipe para lá ficar e fui buscá-lo. Ainda me fez esperar mais não sei quantos minutos, mas finalmente veio. Tratou-se do que havia para tratar com o passaporte do Filipe e o tipo diz-me, finalmente, “Ok!”, mas faz-me aquele sinal de que faltavam mais papéis, que tinha no escritório. “E porque é que não trouxeste já a merdonca dos papéis, meu grande atrasado mental??” pensava eu. Disse ao Filipe para ir aquecendo o motor e dizer aos rapazes para darem uma última checada na água que, nessa mesma madrugada, estava ainda melhor do que na noite anterior, facto que me tranquilizava bastante.

Eram quase onze da manhã quando cheguei ao camião com a pasta de documentação debaixo do braço, incluindo o carnet, e não encontrei os motoristas. O Zé e Luís disseram-me que estavam na loja, mesmo ali ao lado, e de facto lá os encontrei, entretidos a comprarem acessórios automobilísticos numa loja que oferecia literalmente tudo o que um camionista pode desejar nas suas deambulações rodoviárias, como por exemplo uma bela lanterna com taser incluído. O diabo da lanterna, recarregável, era efectivamente barata e a minha Maglite, comprada num transporte do Oceanário vinte e um anos antes, tinha falecido num transporte recente depois de duas décadas de uso muito estimado.

Como já perceberam, estimo o meu equipamento com bastante zêlo, motivo pelo qual tenho o mesmo par de barbatanas há mais de vinte anos, mesmo que as presilhas estejam enxertadas com vários bocados de cordel que foram remediando o caso ao longo de largas centenas de mergulhos. Na ausência de uma lanterna funcional, lá meti a que viria a ser a minha nova fonte de iluminação em cima do balcão, mas o Armando reparou que comprei o modelo sem taser, trocando-a de imediato por uma devidamente preparada para electrocutar assaltantes. Ainda resmunguei uns segundos acerca da legalidade da coisa, mas depois aceitei, pensando para comigo “Nunca se sabe.”

Eu, Zé e Luís saímos da alfândega a pé, para não suscitar demasiadas interrogações turcas, e ficámos à espera do camião depois de uma curva, já longe dos olhares da cabine que controlava a cancela de acesso. Eram onze em ponto quando o poderoso tractor Iveco saiu da alfândega, rebocando a linda galera ornamentada com o nosso vistoso logotipo, exactamente vinte e três horas depois de ter entrado naquele antro de malvadez e burrice burocrática. Assim que estávamos fora da mira dos rapazes, saltámos para dentro da cabine e camuflámo-nos por trás dos condutores, sentados na cama de baixo, cujo fundo era decorado por um imenso poster de uma menina que não teve posses para se cobrir com mais do que umas botas de cabedal que lhe ficavam pelo meio da coxa e lhe permitiam circular na grande mota em que estava sentada.


Fronteira de mais trinta filhas da esposa do Pluto!

As três horas que nos separavam da fronteira passaram depressa, infelizmente encerrados por trás da cortina que separava os motoristas das camas e sem podermos apreciar a paisagem local. A conversa era ligeira, ocasionalmente polvilhada com pequenos sustos, sempre que o Filipe nos dizia “Polícia! Escondam-se!” Entretanto o meu plafond de comunicações extra tinha falecido na tarde anterior, depois das dúzias de mensagens e telefonemas que tinha trocado com a Gözde, mas fui salvo pelo Filipe que, para além do telefone pessoal, tinha o da TPO, que estava aparentemente atestado com saldo infinito. Perto da fronteira comecei a trocar mensagens com o Osman, colega da Gözde e que nos deveria fazer passar para a Bulgária em menos de nada, uma vez que todas as questões relacionadas com a falta de dozvola tinham sido resolvidas durante as vinte e três horas que passámos na fucking alfândega.

O Osman disse-me para ignorarmos o trânsito e camiões parados na fronteira e parar o mais perto possível do ‘parque’. Foi exactamente isso que fizemos, ignorando uns vinte quilómetros de fila com camiões parados na berma da estrada, prosseguindo incessantemente e ignorando as buzinadelas ocasionais de um ou outro condutor enfurecido com o nosso desrespeito pela espera dos outros. Entretanto tentávamos ignorar alguns factos que o Filipe e Armando iam partilhando connosco, uma vez que tinham perguntado a colegas motoristas para partilharem as suas impressões relativamente à passagem da temível fronteira Kapikule – Kapitan Andreevo, que separa a Turquia da Bulgária mas, mais do que isso, separa o ocidente do oriente, pelo que acolhe milhares de camiões diariamente.

Eram duas da tarde quando estacionámos o camião mesmo em frente a um enorme parque, cuja entrada era condicionada por uma cancela. Expliquei ao Osman onde estávamos e este disse-nos para esperarmos. Como tínhamos uma estação de serviço do outro lado da estrada e um enorme buraco no estômago, eu, Luís e Zé atravessámos as quatro faixas de rodagem e o divisor central e lá nos abancámos no interior da estação, com maravilhoso ar condicionado e um empregado mal-encarado, mas eventualmente conseguimos ter três sopas e três pratadas de almôndegas e vegetais à nossa frente, mais dois pratos embrulhados para os motoristas. Estava a enfiar a segunda ou terceira garfada na boca quando, surpresa, toca o telefone e o Filipe diz-nos “Podem vir, q’o Osman já ‘teve aqui e mandou-nos avançar para dentro do parque! Isto parece estar rápido!”

Fagocitámos mais três ou quatro dentadas à pressa e embrulhámos os restos o melhor possível, passando novamente a autoestrada a correr, alegremente animados com a perspectiva de passarmos a fronteira bem rápido e, quem sabe, ainda percorrermos os seiscentos quilómetros até ao ferry de Igoumenitsa a tempo de o apanharmos, uma vez que a passagem da fronteira dava-nos mais uma hora. Apesar de estarmos cientes de que a probabilidade de tal acontecer era remota, deixámo-nos envolver por esses felizes pensamentos.

No enorme parque, repleto de camiões, encontrámos rapidamente os nossos Filipe, Armando e Osman, um senhor corpulento, com os seus sessenta anos, sem um único cabelo e aquele olhar tipicamente turco de quem se está completamente a marimbar para o mundo à sua volta. Cumprimentei-o em inglês e percebi que a comunicação não ia ser tão fácil como eu tinha erradamente pensado que seria. Também reparei que tinha uma daquelas maquinetas de plástico, na mão, como nos dão no Hard Rock Café, que apita e acende luzes vermelhas quando finalmente temos uma mesa. Percebemos que estávamos condenados a nova espera e abancámos no chão de cimento, aproveitando um pequeno degrau, para terminar o nosso almoço e partilhar o que tínhamos trazido com o Filipe e Armando, que agradeceram. Seguiu-se uma bela cafezada no interior de um pequeno mercado e mais uma checada na qualidade da água das bicharocas, que nadavam alegremente e alheias a tudo o que se passava à sua volta. Já iam com um dia e pouco de viagem e os parâmetros da água estavam incrivelmente estáveis, pelo que não parecia haver muito que temer. Afinal de contas, tínhamos quatro raias em cada um dos três tanques com protein skimmer e apenas três no tanque sem, totalizando quinze animais de uns cinco quilos cada. Aproveito para referir que cada tanque transportava quase quatro mil litros, por isso estávamos muito tranquilos no que diz respeito à qualidade de água aguentar-se estável durante a viagem, até porque íamos adicionando carbonato e bicarbonato de sódio, bem como Amquel, para manter o pH e amónia controlados.

A tarde foi passando sem grandes novidades e o sol foi baixando. Deviam ser cinco ou seis da tarde quando o Osman, que desapareceu durante umas horas, apareceu repentinamente no seu carro branco e nos disse que podíamos passar a fronteira a pé, mandando o camião seguir o mais rápido possível! “Eh, lá! Isto está mesmo a bombar, grande Osman!” elogiei eu no inglês mais rudimentar que consegui esgalhar, enquanto ele nos dava boleia no seu carro até à fronteira de carros particulares. Apontou-nos na direcção da passagem de pedestres, despedimo-nos alegremente e lá fomos nós, de passaportes na mão, prontos para continuarmos a nossa aventura. Passámos o primeiro check-point turco, depois um segundo e ainda um terceiro. Ocasionalmente um de nós era retido mais uns segundos do que os outros, o que dava sempre lugar a grande nervosismo, mas não tardou até termos a fronteira búlgara à frente, onde notámos de imediato uma profusão de sorrisos! Foi nesse momento que efectivamente reparámos que o diabo dos turcos não sorriem, mas os búlgaros sim.

Mais três check-points passados, pisámos então território búlgaro e, mais importante ainda, da grandiosa União Europeia, projecto que nunca abracei com tanto carinho como nesse lindíssimo final de tarde do dia 19 de outubro de 2019. Selfie tirada com o sinal “Welcome to Bulgary” atrás de nós, avançámos estoicamente para… um terreno descampado, com um casebre a cair aos pedaços e variados pedestres com aqueles sacos de ráfia que pareciam ter caído de um camião com fruta fora de época. Tudo isto vigiado por imponentes torres militares que, apesar de aparentemente desactivadas, não deixavam de intimidar três pobres tugas que, de mochilitas ligeiras às costas, tentavam perceber onde é que se tinham enfiado. Olhámos em volta e percebemos que o trilho pedestre da fronteira nos tinha afastado consideravelmente da estrada principal, particularmente da zona de veículos pesados, que estava no extremo oposto da fronteira. Avançámos com algum nervosismo por uma estrada de campo com ar sombrio, com o sol já abaixo do horizonte, gracejando que a maior parte dos filmes de terror têm inícios similares.

A dado momento vi uma aberta no terreno à nossa direita e lá apontámos à estrada, enfrentando mato com quase um metro de altura, quantidades insanas de lixo e, estando eu de sandálias e calções, não pude deixar de comentar que estava a olhar muito cuidadosamente para o chão, porque parecia-me que aquelas paragens já viram muitas seringas e diria, até, um ou outro casting para o ‘Hostel’ e respectivas sequelas. Depois de uns minutos de estepe irregular, sempre a sentirmos os olhos das torres de vigilância militares em cima de nós, lá passámos a autoestrada que saía da Bulgária e entrava na Turquia, repleta de carros ligeiros e camiões parados até perder de vista. Mais uns passos de mato e demos por nós na estrada vazia por onde passavam ocasionais carros e camiões finalmente livres da tortura turca e ansiosos por acelerarem em território europeu.

À medida que o planeta rodava e o céu ia escurecendo, liguei ao Filipe a explicar que estávamos na estrada que saía da fronteira e perguntei se estava perto de a passar. O Filipe disse que não via o Osman há um grande bocado e não fazia a mais pequena ideia de quando passaria. “Ok, abração grande e já nos vemos aqui na Bulgária!” comentei eu. Entretanto o frio ia apertando e lamentei a minha escolha de guarda-roupa, porque os calções, t-shirt e polo finíssimo de mangas compridas – a celebrar a operação ‘Turkish Charter Delight’ de oito anos antes – não estavam propriamente a manter-me quente, particularmente quando passava um camião e éramos fustigados por uma valente rabanada de ar.

Reparei então numas luzes distantes, que sugeriam uma área de serviço, e comentei com os rapazes “Eh pá, então e que tal esperarmos ali sentadinhos, com um belo cappuccino quentinho à frente e, se a Força nos ajudar, talvez até com wifi e matam-se uns mails?” A equipa começou por ficar um bocado assustada com o longuíssimo caminho de cabras que parecíamos ter entre nós e o conforto da estação, mas uma análise mais cuidada levou-nos a suspeitar que a estrada onde estávamos seguramente lá passaria, por isso puxámos pelos miolos e atravessámos para o lado de saída da Bulgária, uma vez que o trânsito estava todo parado e a probabilidade de levarmos com um camião pelas costas, na noite que já ia escura, era bem menor. Andámos uns belos vinte ou trinta minutos, pelo que estimo uns dois ou três quilómetros de caminho, uma vez que o amigo Endomondo contabiliza os meus quilómetros entre oito e nove minutos, dependendo da rapidez da passada. Nessa noite búlgara, com o frio a apertar os ossos, estimo que só mesmo as pontuais portas de camião abertas é que nos atrasavam o passo, porque percorremos o estreito corredor entre divisor metálico e centenas de camiões parados no passo mais rápido que conseguimos.

Chegados à área de serviço, notámos o ar novinho em folha e quase que cheirávamos o café e croissants acabadinhos de sair do forno, antes de nos apercebermos que estava em construção e, portanto, ainda não aberta ao público. “Olha que bela merdonca!…” pensámos, enquanto um dos nativos nos indicava com gestos e alguma gritaria que não podíamos estar ali sentados, pelo que aparcámos os rabiosques mesmo à saída da dita. Facto curioso foi repararmos, quando puxámos dos telemóveis, que a estação ainda não estava a bombar, mas o wifi, sim! Saquei por isso do portátil e matei os mails que a bateria me permitiu, que infelizmente não foram muitos.

A dada altura, apercebi-me que tinha as pernas a tremer de forma mais ou menos descontrolada, pelo que pedi embaraçadamente aos meus dois parceiros de infortúnio se se importavam que me sentasse entre os dois, o que sempre podia atrasar a hipotermia que parecia estar a querer instalar-se. O Luís despiu prontamente o casaco, apesar dos meus barafustos, porque não queria que o rapaz ficasse cheio de frio para curar o meu. Contudo, lá insistiu que tinha uma camisola grossa por baixo do casacão, que aceitei que me cobrisse as pernas e que muitíssimo bem me soube. Entretanto liguei ao Filipe a explicar que tínhamos mudado de posição e estávamos, agora, na dita estação de serviço. As notícias do lado dele não eram nada animadoras, porque aparentemente não tinham avançado rigorosamente nada. Disse apenas que o Osman aparecia lá ocasionalmente para lhe sacar mais uma nota de vinte euros que, supostamente, estaria a usar para lubrificar o processo aduaneiro turco. Foi aí que o Filipe sugeriu que, se calhar, era mais sensato voltarmos para o lado turco porque, pelo menos, estaríamos todos juntos. Admito que a ideia não me agradou por vários motivos, um dos quais a perspectiva de voltar a passar a fronteira – a pé – mas no sentido inverso, acto que me pareceu que iria suscitar múltiplas interrogações por parte das autoridades turcas e búlgaras. Lá decidimos aguentar mais um bocado e ver como paravam as modas.

Deviam ser umas nove da noite quando decidimos que a falta de progressos na fronteira ditava que, eventualmente, permanecermos ali na estação, ao relento, não seria a melhor escolha, pelo que devolvi o casaco ao Luís, abotoei o meu polo até ao pescoço, apertei a mochila contra as costas e lá voltámos a percorrer a estrada repleta de camiões paradíssimos, até chegarmos a um boteco de ar manhoso na berma da estrada que saía da Turquia, embora ainda do lado búlgaro. Era um casebre com ar esconso, mas tinha um alpendre com uma mesa e três cadeiras, um frigorífico atestado de latas de Coca-cola e um jovem dentro de um ‘escritório’, se é que a isso podemos chamar uma secretária cheia de papéis desarrumados, envolta por uma cortina de plástico. As bebidas eram um euro cada e, milagrosamente, conseguimos juntar três euros, pelo que cumprimentámos o dono com acenos de cabeça simpáticos e sentámo-nos na mesa a saborearmos as nossas Coca-colas com um cigarrito, porque os nervos puxavam pelo tabaco (aquecido). Entretanto liguei novamente à Gözde, que me ia ouvindo arengar e só me respondia “Please wait.”, apesar das minhas insistências repetidas de que o tipo de carga que tínhamos não podia esperar eternamente.

Seriam umas dez da noite quando uma carrinha Ford Transit branca, com um gajo encorpado ao volante e duas meninas no banco de trás, entrou no terreno em frente ao boteco e parou. Ele saiu da carrinha, mas as meninas ficaram lá dentro. Nenhum de nós abriu a boca, mas, mais tarde, todos concordámos que tememos pelos nossos rins, fígado e pâncreas, visto que a carrinha das recolhas de órgãos tinha vindo visitar os três estrangeiros que estupidamente resolveram bebericar Coca-cola no meio dum descampado junto à fronteira turco-búlgara.

Mas dir-se-ia que o nosso ar desmazelado não augurava rins de grande qualidade, pelo que o senhor da Ford Transit voltou a entrar nela, depois de conversar com o dono do estabelecimento, e lá foi levar as meninas ao jantar de família onde provavelmente se dirigiam. Seriam umas onze horas quando o Filipe me ligou e o tom de voz com que proferiu “Amigo João…” fez-me antever o que me ia dizer a seguir… “…isto ‘tá p’ra aqui tudo parado, parece que há um problema com o carnet, e o Osman tem de ir à alfândega resolvê-lo. Só que a alfândega já fechou e só consegue amanhã às nove.”

Fechei os olhos enquanto ouvia o Filipe e a expressão ‘déjà-vu’ me pairava na cabeça… O Zé e Luís perceberam de imediato o que se passava só pela cor esverdeada da minha cara. Confirmei os piores medos de ambos quando me despedi do Filipe com “Ok, Filipão. Já vamos p’raí. Força nisso, amigo. Ainda nos havemos de rir desta merda toda…”

Quando carreguei no botão vermelho os rapazes já estavam em pé, de mochilas às costas. “Vamos a isto, rapaziada…  A ver mas é se não somos todos presos…” e lá caminhámos, nervosos e calados, em direcção ao primeiro dos três check-points búlgaros. Ainda tivemos um ou outro olhar mais perscrutante quando viram nos carimbos que tínhamos entrado no país na mesma data e, ainda por cima, vínhamos a pé e praticamente de mãos a abanar. Mas os olhares não passaram disso mesmo e não passou muito tempo até estarmos perante o primeiro dos três controlos turcos, em que uma turba de quatro ou cinco polícias alternavam os olhares intrigados entre nós, passaportes, nós e passaportes antes de finalmente nos deixarem passar. “Chiça, que milagre do carago!” dissemos, garantindo que a nossa exclamação rimava com uma árvore famosa pela qualidade da sua madeira.

Já no lado turco, estávamos prestes a entrar no parque dos camiões quando a Gözde me ligou. Começou por balbuciar algo como “João, não sei bem como te dizer isto, mas tenho más notícias…” ao que respondi “Já sei. Há um problema com o carnet e só se resolve amanhã de manhã. Nós já estamos novamente no lado turco da fronteira e já vamos ter com o camião. Olha, não sei que te diga… em vinte anos de transportes, nunca vi tamanha incompetência. Tchau, falamos amanhã quando estiver tudo resolvido.” e desliguei, furioso demais para continuar a gastar bateria, tempo, ou saldo da TPO.

Entrar no parque foi uma pequena aventura, porque era noite cerrada e três pedestres a entrarem à campeão por ali dentro podia passar despercebido durante o dia movimentado, mas, à noite, com o parque sepulcralmente sossegado, pois claro que o gajo da cancela saltou detrás do guichet e veio esbracejar p’ra nossa frente. Como ainda estava a terminar o telefonema com a Gözde, o Luís foi avançando com a explicação de quem éramos, mas percebi logo que o guarda da cancela não estava a ir na conversa. Apressei o fim da chamada e, chegando ao pé do gajo, expliquei-lhe calmamente quem éramos – com o mínimo de palavras possível – enquanto apontava para o logotipo do polo. Acrescentei só que éramos biólogos com uma carga de tubarões vivos, porque ‘sharks’ sempre é mais internacionalmente reconhecido do que ‘rays’. Mas o tipo não se demovia, até usar a palavra ‘truck’. “Truck?” perguntou ele! “Sim, maluco! Nós (sinalizando nós os três) truck, (a fazer de conta que tinha um volante nas mãos)”. O canceleiro lá fez sinal para avançarmos e o Luís elogiou os meus dotes de adaptabilidade linguística. Apreciei o elogio, mas estava derrotado demais com toda aquela palermada para sorrir como normalmente teria feito.

Já dentro do parque onde tínhamos passado a tarde, liguei ao Filipe e percebi que tinham passado para um segundo ponto de controlo. Percebi também, pela gritaria de um maduro quando nos viu a andarmos nessa direcção, que nos estávamos a habilitar a uma bela sessão de porrada – ou explicações – se continuássemos naquela rota teimosa, por isso voltámos para trás ou, pelo menos, para um ponto em que o segurança não nos pudesse ver. Foi aí que expliquei ao Filipe que não conseguíamos ir ter com eles sem roubarmos um camião, pelo que já lhe ligaria dali a uns minutos para explicar o procedimento de monitorização da água, porque já se tinham passado umas boas seis ou sete horas desde a última verificação. Notei o nervosismo na voz do Filipe, mas tranquilizei-o: “Calma, Filipinho… Até um chimpanzé dá conta disso… Já te ligo com mais calma, dá-me só um minuto para montar aqui um acampamento.”

Dirigimo-nos então a um hotel que ficava mesmo ao lado do parque de camiões da fronteira e no qual tínhamos reparado mais cedo. Creio que tivemos os três o mesmo pensamento na altura, e que foi “Quem é que quer apostar que ainda vamos aqui passar a noite?”, mas ninguém se atreveu a verbalizá-lo. Aluguei três quartos, que custaram aproximadamente dez euros cada um! Dez. A seguir abancámos numa mesa no exterior do hotel e liguei ao Filipe, que já estava dentro do camião com o Armando. Expliquei-lhe como recolher uma amostra de água de cada tanque com uns copos de plástico cor de laranja, que nos acompanham há anos. Expliquei-lhe ainda onde estava a folha de registo e onde deveria começar por anotar a data e hora, correspondendo cada folha a um tanque. Começámos pelo pH, que consiste unicamente em prender o medidor ao bordo do copo, ligá-lo e esperar. Enquanto o pH estabilizava, porque leva sempre uns minutos, fomos atacando o oxigénio, cuja sonda precisa de ser movida para dar leituras fidedignas, por isso disse ao Filipe para a usar como se estivesse a misturar o açúcar num café. Entretanto iam registando os valores nas folhas e eu ia-os proferindo alto, para o Zé e Luís ouvirem, enquanto fazíamos sinais de aprovação com as mãos, porque estavam óptimos. Terminámos com a análise da amónia, que é um processo mais chatinho porque tem de se colocar 5 mililitros de cada tanque num tubinho e adicionar sete gotas de três reagentes diferentes em cada um, antes de esperar vinte minutos. Mas não esperámos pelos vinte minutos para pedir ao Filipe e Armando que fossem colocando o pó destoxificador de amónia, que iríamos usar mesmo que a medição de amónia indicasse o valor nulo que esperávamos. Pedi-lhes ainda para adicionarem uma pequena quantidade de carbonato e bicarbonato de sódio a cada tanque, para manutenção do pH estável. O telefonema terá demorado uns trinta minutos e lembrei-me da mensagem automática que a MEO me enviou quando liguei o telemóvel no aeroporto de Istambul, quatro dias antes: dois euros e quarenta e cinco cêntimos por minuto. “Ui, logo faço contas com o Sérgio quando chegar!…” pensei.

Animais e água estabilizada, só restava atravessar a rua e comprar umas bolachas ou batatas fritas, uma vez que a cozinha da estação de serviço onde tínhamos comprado almoço já estava encerrada. Ainda martelei uns mails graças ao wifi do hotel e apaguei a luz por volta da uma da manhã, imediatamente após colocar o despertador para as oito, uma vez que não se passaria nada antes das nove. Tendo em conta que os animais estavam impecáveis e o nosso calvário turco estava à beira do fim, esperando-se que a componente europeia da viagem fosse uma lisura, atrevi-me a sorrir antes de fechar os olhos e enviar uma mensagem de boa noite à Nina, que me esperava ter de volta a casa no dia seguinte e, agora, nem sequer sabia quando é que eu chegaria.

Não resisti a partilhar as aventuras dos últimos dias com o Rui Guedes, nos Açores, que me perguntou se não seria melhor voltar para trás, descarregar os bichos e recomeçar uns dias mais tarde. Respondi-lhe que tínhamos assumido o compromisso de entregar a bicheza em Madrid antes de dia vinte e cinco e, de qualquer forma, pelo que podia apreciar daquelas paragens, recomeçar dali a uns dias não era de todo garantia de que corresse melhor, porque aqueles energúmenos tinham prazer em criar dificuldades às pessoas, transportando elas animais vivos ou cascas de banana… O Rui desejou-me coragem e lá me atrevi finalmente a fechar os olhos e tentar sonhar com o resto da viagem.

Eram umas duas da manhã quando o telefone tocou e a voz do Armando, do outro lado, gritava emergência “João, ‘tá aqui a polícia, com cães e tudo, andam a revirar esta merda toda, já atiraram com as nossas coisas todas ao chão e querem levar a gente presos!… O Filipe ‘tá a falar com eles, mas ninguém percebe nada e isto ‘tá fodido, pá!”

Sentei-me direito na cama e, num momento de lucidez raro, disse ao Armando, com a voz segura e a falar calmamente, para que ele não perdesse uma grama do importante recado que tinha para lhe dar: “Armandinho, ouve bem: vou-te enviar um sms com o número do Osman; clica no número dele e depois encosta o telefone ao ouvido de um polícia!”

Foi a única coisa que me ocorreu e restou-me rezar fervorosamente para que o Osman atendesse o telemóvel às duas da manhã, ou os nossos motoristas seriam presos e as raias apreendidas.

Esperei ansiosamente por novo telefonema do Armando, com o coração a mil e, já sabendo do que a casa gasta, sabia que um telefonema dali a dois ou três minutos só podia ser mau sinal, porque não teria passado tempo suficiente para a crise se solucionar, o que só significaria que estava ainda pior. O diabo é que não havia muito mais que pudesse fazer, porque sair do hotel e ir em direcção aos rapazes só resultaria em ser atirado para a mesma cela – ou outra – com eles.

Passaram cinco minutos e não chegou nenhum telefonema.

Ao fim de mais cinco comecei a permitir-me alguma tranquilidade, mas também sabia que, se passasse mais de uma hora sem notícias, isso só poderia significar que os rapazes estavam efectivamente presos, pelo que me preparei para ligar eu ao Osman dentro de mais cinco minutos se não tivesse notícias. E a seguir à Gözde, se este não atendesse.

Mas, entretanto, ligou o Armando e o tom de voz, inicialmente aterrorizado, agora já era bem mais tranquilo. O Osman atendeu a chamada telefónica e lá explicou aos polícias que o pó branco que um deles tinha visto os motoristas manusearem, era absolutamente inofensivo e usado para manter a qualidade da água das raias. Tudo se tinha tratado de um grande mal-entendido e o Armando confirmava que os polícias se estavam a retirar, numa grande galhofa turca que, provavelmente, dançaria em torno de qualquer coisa como “Estes palermas nem sabem do que se safaram… Se não fosse o amigo turco deles, a esta hora já estávamos numa cena à Lourenço da Arábia…”

Na manhã seguinte, sábado, dia 20 de outubro de 2018, acordei bem antes do despertador e escrevi um relato dos factos até à data ao Pipo, avisando-o que não chegaríamos a Madrid no domingo à noite como previsto. Na melhor das hipóteses chegaríamos na segunda-feira, mas, depois dos dois últimos dias, só me atreveria a comprometer com uma hora de chegada a Madrid quando passássemos a placa ‘Madrid’ na autoestrada. Eram oito e picos quando fui à sala de pequenos-almoços, onde apareceu o Luís pouco depois. Contei-lhe a aventura nocturna e eram quase nove quando liguei ao Filipe e Armando a perguntar se tinham conseguido descansar alguma coisa e se precisavam de ajuda – leia-se, ‘conselhos telefónicos’ – para a sessão matinal de medição dos parâmetros químicos e físicos da água. O Filipe ficou quase ofendido quando me disse “Ó amigo João, mas tu pensas q’a gente and’aqui a dormir? Já medimos tudo há mais de uma hora e está tudo impecável. Já pusemos carbonato, bicarbonato e Amquel em todos os tanques, um bocadinho menos nos tanques 3 e 4 porque os valores estavam bons.”

“Ah, meus grandes biólogos marinhos!”, berrei eu ao telefone, impressionado e emocionado com a capacidade desta malta se adaptar às mais terríveis provações. Mas o melhor do telefonema veio a seguir, quando o Filipe disse que o Osman já lhe tinha ligado e disse-lhe para não mostrar o carnet na fronteira, porque era a única maneira de passarem. Nem me atrevi a questionar o que isso queria dizer, mas percebi imediatamente que, por ser sábado, não dava para resolver coisíssima nenhuma na alfândega, por estar fechada. Aparentemente o problema, na noite anterior, estava relacionado com uma carimbadela no carnet que, na alfândega, foi mal dada. Dir-se-ia que vinte e três horas não é tempo suficiente para um turco carimbar um carnet no sítio certo, mesmo que o trabalho dele seja carimbar mil carnets – ou quatro? – por dia. Mas adiante. O Filipe aconselhou-nos a passar novamente a fronteira porque parecia que a coisa, desta vez, estava controlada. Não me atrevi a concordar com ele, mas lá combinei com o Luís e Zé pisgarmo-nos dali para fora em cinco minutos e voltarmos a passar a fronteira; a pé, pois claro.

Três check-points turcos ultrapassados sem problemas, apesar dos olhares inquisitivos, e mais três check-points búlgaros também passados sem problemas de maior, não tardou muito até estarmos alapados no nosso amigo das Coca-colas, que já se sabe que é a bebida indicada para o pequeno-almoço. E foi aí que, de repente, toca o telefone e… um milagre. O Filipe já estava na Bulgária e pediu-nos para irmos ter com eles, para darmos um ajuda na inspecção veterinária que se seguiria! Ah, que grande felicidade! Não creio que muita gente tenha dado aqueles passos com tanta satisfação como nós, enquanto abanávamos com a deslocação de ar provocada pelos camiões que abandonavam o calvário fronteiriço ao máximo de velocidade que os potentes motores lhes permitiam. Ignorámos um guarda búlgaro que operava uma cancela e vigiava a saída da fronteira, mas, quando o apanhei a olhar fixamente para nós, disse apenas “Truck!” e apontei para os (muitos) camiões que entravam na Bulgária. Ele fez aquele sinal internacionalmente conhecido como “Ok, chouriço!” e continuámos.

Poucos metros à frente lá vimos o nosso lindíssimo camião com o logotipo mais sexy da história do marketing e pois claro que não foram poupados abraços e sorriso quando nos apanhámos junto ao Filipe e Armando. Como não havia tempo a perder, fui logo com o Filipe para o guichet dos bens perecíveis, onde uma fila lenta e chata teimava em subir os dois ou três degraus que nos separavam de uma janela que tinha apenas uns três centímetros abertos. Durante essa penosa escalada o Filipe lá me explicou que um problema qualquer com o carnet os tinha impedido de passar a fronteira na noite anterior. Nessa mesma manhã o Osman disse-lhe “Diz que não tens carnet” e sinalizou-lhe para o meter debaixo do banco, ou qualquer coisa…

Ora deixem-me repetir este pedacinho da história, caso não tenham prestado a devida atenção ao magnífico processo aduaneiro turco:

Sexta-feira à noite: passagem recusada porque o carnet foi carimbado no sítio errado;

Sábado de manhã: passagem aceite quando o motorista disse “Não tenho carnet”.

Et voilà.

Quando chegámos finalmente ao guichet, expliquei ao que vínhamos e o tipo disse “Animais vivos é ali em frente.” “Olha que bela bosta…” pensámos eu e o Filipe em conjunto. Lá fomos ao edifício em frente, onde um búlgaro mal-encarado me mandou esperar. Finalmente recebeu os meus papelitos e não passaram mais de quinze ou vinte minutos até um outro búlgaro sair e caminhar para o camião. Quando se aproximou da porta traseira fez sinal a perguntar onde estava a escada. Lamentei não haver escada, mas trepei lá para cima como um macaco e mostrei-lhe onde colocar os pés. O tipo lá subiu – a custo e contrariado – e espreitou o primeiro tanque com raias, que estavam com um ar tranquilo e a água tão limpa que parecia do Luso.

O senhor inspector desceu (também com dificuldade) da galera e disse-me que tinha de ir pagar num guichet. Lá fui eu e uma menina simpática passou-me um papelucho que dizia, se a memória não me falha, cento e trinta euros, ou algo similar. Paguei o montante com o pouco cash que ainda tinha e ela meteu-me um outro papel na mão. Perguntei-lhe se nos podíamos ir embora e ela, sorridente, disse “Yes, have a good trip to Portugal!

“Oh que coisa mais fofa!! Vamos a isto, rapazes! Armandinho e Filipe, já nos apanham ali fora!” e estuguei o passo com o Luís e Zé, enquanto o possante Iveco saía da zona aduaneira e entrava em território búlgaro!

Já escondidinhos na cama camionística, bem aconchegados junto à senhora motoqueira, percorremos a meia dúzia de quilómetros que nos separava da fronteira com a Grécia, que atravessámos depois de uma caminhada de três ou quatro quilómetros e que me permitiu tirar umas fotografias com a Ninucha junto às placas da Bulgária e Grécia. O Armando ligou-nos então a dizer que o camião tinha passado pela cabine da direita, por isso dirigimo-nos à da esquerda, para evitarmos o mesmo guarda fronteiriço. Afinal de contas, o tipo não seria completamente totó e não lhe passaria despercebido o facto de um camião português passar uma fronteira completamente vazia e, por estranha coincidência, três portugueses passavam-na também a penantes apenas uns minutos depois. Os guardas búlgaros não colocaram questões, mas os gregos perguntaram que fazíamos naquelas paragens a pé. Respondi que nos íamos encontrar com amigos mais à frente e mandaram-nos seguir. Que maravilha que era estar dentro da União Europeia e ser portador de um cartão do cidadão de uns dos vinte e sete países!

Logo após a primeira curva saltámos para dentro do camião e lá seguimos caminho até Alexandroupoli, uns cento e cinquenta quilómetros à nossa frente. Usei, entretanto, o telefone do Filipe, já em território europeu e, portanto, livre de taxas de roaming, para reservar um carrucho no aeroporto da cidade grega. Até lá tínhamos uma estrada nacional que percorre a fronteira grega-turca de norte a sul e permitimo-nos uma pequena onda de boa disposição, uma vez que as coisas pareciam estar lentamente a engrenar. Aproveitei até para ligar ao meu pai e dar um pequeno update da viagem, pedindo-lhe ligasse ao apoio técnico da MEO e reactivasse o meu telefone, que continuava a não permitir qualquer chamada mesmo depois da entrada em território europeu. O meu pai, como sempre, disse-me para ficar descansado, que já tratava do assunto.

Vivia-se um clima de boa disposição na cabine do camião, até uma travagem mais ou menos intensa nos levar a espreitar pela cortina para vermos o que se passaria à nossa frente e, a julgar pelo aparato de carros parados e pessoas no meio da estrada, tinha havido um acidente grave. “Oh diabo!…” dissemos mais ou menos em coro.


Acidente

Ao olharmos com mais cuidado para o grupo na estrada percebemos enfim que não se tratava de um acidente, mas sim de trinta ou quarenta homens, mulheres, crianças, velhos e velhas, chamando-me de imediato a atenção uma menina de três ou quatro anos que, de casaco de malha cor-de-rosa, chorava inconsolavelmente. Estávamos perante um grupo de migrantes que, com os seus pertences em pequenos sacos, se deitaram na estrada e não nos deixavam seguir caminho, tentando entrar num camião que, entretanto, tinha parado do outro lado da barreira que formavam, no sentido oposto. Incitei o Filipe a ir avançando – devagar – enquanto os ânimos rapidamente se começaram a exaltar dentro e fora da cabine. Não levou muito até termos um barbudo pendurado no vidro da frente, agarrado às escovas de limpeza, e outros nos vidros laterais. Foi aí que um deles, na rua, gritou algo e apontou para trás. “Os gajos perceberam que a galera ‘tá aberta!” gritou o Filipe. “Fuck!” pensei eu, consciente que efectivamente não costumávamos trancar o compartimento de carga depois de verificar a água.

Ponderou-se a estratégia de avançar sem temor, mas o bom senso prevaleceu e regressámos à terra depois dessa pequena espiral de demência, que não terá durado mais de um milissegundo. O Filipe manteve a cabeça fria e começou a recuar, numa tentativa de desencorajar a turba de entrar dentro da galera. E eu também mantive o tino e agarrei-me ao telemóvel, ligando para o bendito ‘112’, que é válido em toda a União Europeia. Atendeu-me de imediato uma voz grega, que me respondeu em inglês assim que me identifiquei e expliquei com clareza cristalina que estávamos a ser “hijacked” por refugiados na estrada nacional E85, a setenta quilómetros a norte de Alexandroupoli.

Enfatizei a gravidade da situação e o facto de termos pessoas a tentarem entrar dentro do camião. A voz assegurou-me que já tinham agentes a caminho do local e desliguei. Entretanto o Filipe já tinha colocado quase uma centena de metros entre nós e aquele grupo desesperado, por isso o Armando abriu a porta e saiu com o cadeado das portas na mão, para trancar a galera. E eu saí atrás dele, com a bendita lanterna turca, já de taser ligado, pronto a correr com seja quem for que tivesse entrado dentro do compartimento de carga. O cérebro humano está repleto de mistérios porque, naqueles momentos movidos a adrenalina, parte das sinapses disparavam uma vontade temerosa de não encontrar um único refugiado dentro da galera antes de a trancarmos, enquanto outras, mais belicosas, esperavam ansiosamente que o taser tivesse oportunidade de ser estreado num pobre lombo sírio que mais não desejava do que uma vida similar à nossa, repleta de conforto.

Mas a Força, aliada aos reflexos rápidos e condução profissional do Filipe, impediu a entrada de passageiros clandestinos na nossa carga, que trancámos furiosamente depois de inspecção cuidada a todos os recantos do enorme compartimento de treze metros, incluindo dentro dos tanques! De volta à cabine, esperámos com ansiedade pela vinda da polícia, que realmente não tardou mais de cinco minutos e não deixou de ser impressionante observar dois únicos agentes arrastarem – literalmente – corpos de adultos para fora da estrada, enquanto os restantes – migrantes e condutores – se limitavam a olhar.

Já em movimento, ultrapassámos o silêncio desconfortável inicial com comentários de natureza mais humanitária, lamentando o ponto a que o mundo chegou, em que a desigualdade é tal que uma percentagem significativa da população se vê obrigada a deixar tudo o que tem e fazer-se à estrada, em direcção a uma vida melhor. Por mais risco e perigos que tenham pela frente – e sabemos que não são poucos – esse cenário é preferível ao que deixam para trás. Não deixa de ser uma lição para nós, ocidentais mimados que nos queixamos de ter pouco saldo no telemóvel e passarmos quarenta e oito horas nas mãos de funcionários alfandegários e aduaneiros.

Já deviam ser seis e tal quando chegámos finalmente ao aeroporto de Alexandroupoli, onde me dirigi, enquanto os rapazes seguiam com o camião em busca de um local de estacionamento apropriado e davam uma vistoria à qualidade da água e bichos. Quando entrei no aeroporto fui directo à casa de banho, que tinha a bexiga a rebentar com as garrafas de água que fomos bebendo ao longo do dia. Logo a seguir apressei o passo em direcção ao balcão da Avis que, à semelhança dos restantes balcões de empresas de aluguer de carros, estava completamente encerrado. “Isto está bonito, está…”

Superado o choque inicial, olhei para o placard de informação de voos e reparei que iam aterrar alguns voos perto das oito da noite. Foi aí que percebi que, num aeroporto tão pequeno, estes balcões só abriam quando chegavam voos. Confirmei a informação com uma menina fardada que por ali passava e fui dar a notícia aos meus compadres. A qualidade de água e comportamento dos bichos, que já levavam mais de cinquenta horas de viagem no bucho, continuavam insuperáveis, pelo que regressei ao terminal com o Zé, Luís e Armando, para apanharmos o nosso belo Skoda Octavia e comprarmos uns morfes para nós e Filipinho. Quando pagava a comida reparei nuns pequenos penduricalhos, entre os quais se incluía o grande Chewbacca que, com a ajuda do Luís, desembrulhei do novelo de cordel em que estava metido e adicionei aos artigos que ia pagar.

Conhecido doravante como ‘Greek Chewie’, este amigo fez o resto da viagem pendurado no retrovisor do carro – com delicioso cheirinho a novo – e tornou-se também no namorado da Ninucha, que já andava em transportes provavelmente há mais tempo do que gostaria. Em poucos minutos já estávamos a caminho, depois do Filipe reparar uma luz traseira fundida. Desta vez, contudo, já não íamos apertados no compartimento da senhora motard atrevida, mas sim confortavelmente instalados no fantástico Skoda, cujo sistema de som nos deliciou durante os seiscentos quilómetros que nos separavam de Igoumenitsa e o ferry para Brindisi. Deviam ser nove da noite quando nos metemos ao caminho, faltando por isso três horas para o bendito ferry. Num mundo fantasioso perfeito, viajaríamos a duzentos quilómetros por hora e chegaríamos a tempo de embarcar. No mundo real, estaríamos em Igoumenitsa pela manhã e teríamos o dia todo pela frente, esperando nós que um hotelzito baratucho nos permitisse tomar um duche e dormir uma bela sesta.

As horas de viagem nocturna entre Alexandroupoli e a primeira paragem para verificação das águas foram, de longe, as mais felizes de toda esta saga repleta de sobressaltos sombrios. O maldito dozvola, o calvário alfandegário, o castigo aduaneiro e a intensidade dos migrantes pareciam cada vez mais distantes, à medida que progredíamos rumo à civilização, ao som bombástico de uma playlist de rockalhada valente que o Luís tinha no telefone, ligado ao Skoda por Bluetooth. Cada novo tema era recebido com esfuziante alegria por mim e pelo Zé, na frente, enquanto eu tamborilava o batuque da excelente selecção musical do Luís no volante do nosso intensamente apreciado Rocinante. Mas a Força estava determinada em não nos dar descanso e mostrou-nos os dentes na paragem seguinte, quando olhámos com atenção para a pressão das garrafas de oxigénio e nos apercebemos que já tínhamos gastado mais de metade de cada uma, sendo que ainda não estávamos a meio do trajecto – por mais perturbador que este facto soasse. A verdade é que estávamos on the road há dois dias – quase três – e tínhamos percorrido suas ou três centenas de quilómetros à conta dos atrasos turcos, pelo que comecei rapidamente a fazer contas de cabeça. Foi aí que perguntei ao Zé se sabia como estava a pressão da garrafa extra que trazíamos e o meu estimado antigo aluno respondeu-me “Acho que está boa. O David abanou-a, lá em Peniche, e pareceu-nos bem.”

Admito que deixei que o cansaço me toldasse o raciocínio e escapou-me um “Mas é assim que se mede a pressão dentro das garrafas, nesta empresa?… Então e que tal meter-lhe um regulador e medi-la como deve ser?” que foi exactamente o que fiz a seguir e fiquei tranquilizado com o resultado, porque a garrafa estava três quartos cheia. Mas o mal estava feito e o ambiente ficou bem mais sorumbático, porque o chefe estava claramente decepcionado com a rapaziada. Já dentro do carro, balbuciei um pedido de desculpas pela minha impaciência e convertemos rapidamente aqueles limões em limonada, enquanto o Zé ia anotando no telemóvel uma vasta lista de melhoramentos que pretendíamos fazer no equipamento quando regressássemos, melhoramentos esses que já seriam aplicados no transporte da Noruega para Aveiro, poucos dias depois de chegarmos.

O resto do trajecto grego da viagem decorreu sem sobressaltos e o sol estava a nascer quando entrámos em Igoumenitsa, onde o enorme cais de entrada para o ferry estava fechado e completamente vazio. Afinal de contas, eram seis da manhã e faltavam dezoito horas para o bicho. Depois de vistoriarmos a água, decidimos que estava na hora de nos apoiarmos mais no arejador e menos nas garrafas de oxigénio, pelo que escortanhámos um monte de mangueira de ar e, usando todas as pedras difusoras que o David e Zé tinham carregado no camião, colocámos duas mangueiras com ar em cada tanque e apenas uma de oxigénio. A regra, doravante, seria desligar o oxigénio pressurizado e usar apenas arejamento fornecido pelo arejador. Satisfeitos com o trabalho efectuado e com uma bela directa no lombo, recostámos os bancos do Skoda e fechámos os olhos durante uns minutos, enquanto os motoristas faziam o mesmo, com o motor sempre a trabalhar.

Deviam ser umas oito da manhã quando voltei a ligar o carro e pensei “Bom, faltam dezasseis horas para o ferry e não as vamos passar enfiados dentro de um carro, num parque de estacionamento!” Conduzi até à primeira bomba de serviço que vi e, pelo caminho, não me passou despercebido uma residencialzita de ar baratucho, mas simpático, que me lembrou aqueles estabelecimentos que vemos na Nazaré, Peniche e Algarve, com sinais escritos à mão que, no verão, dizem “Rooms | Zimmer | Chambres”. Perguntei ao senhor da estação BP se podia aparcar um camião TIR ali à porta dele durante umas horas e mantê-lo ligado a uma tomada de duzentos e vinte volts. O senhor foi muito simpático, mas disse-me que não podia ajudar, porque era uma bomba pequena e sem muito espaço à frente – algo em que também eu já tinha reparado, embora tivesse visto uma esquina que safava a situação. Contudo, deu-me instruções para uma outra bomba BP, bem maior, e um cartão da mesma, onde me disse para falar com o senhor Spyros. Meti-me no carro e lá segui as instruções do senhor da BP, que me levaram direitinho a uma enorme área de serviço, também BP, já à saída da cidade. Parei o carro e perguntei ao primeiro rapaz que vi se era o senhor Spyros. Apontou para um cavalheiro mais velho dentro da bomba. Expliquei-lhe a situação e respondeu-me, sem hesitar: “Claro que sim, tragam o vosso camião.” Tive vontade de abraçar o homem, mas não havia tempo a perder, por isso enfiei-me no carro e voltei ao camião, onde tive de acordar o Filipe e Armando, mas era por uma boa causa. “Rapazes, venham atrás de mim!” disse-lhes eu, de ar triunfante.

Conduzi devagar até à bomba, sempre a garantir que o camião estava atrás de nós, tarefa que não é difícil num vilarejo pequeno numa madrugada de domingo. Pelo caminho reparámos num adulto, de tez mais escura que a dos nativos, com uma criança que não deveria ter mais de oito ou nove anos. As imagens da tarde anterior levaram-nos a comentar de imediato que este jovem, e o filho, estavam a tentar fugir de uma vida duríssima, não suspeitando que o longo caminho que tinham pela frente também não seria mais fácil, mas este par será revisitado mais tarde. Quando chegámos à área de serviço do senhor Spyros, este indicou-nos onde o camião podia estacionar durante o dia todo e a tomada onde poderíamos ligar a nossa ficha salvadora. Os rapazes começaram a desenrolar a nossa enorme extensão eléctrica, mas, antes desta chegar a meio, já todos tínhamos percebido que não chegaria à tomada. Incomodei novamente o senhor Spyros perguntando se podia comprar uma extensão na loja da sua bomba de gasolina. Ele sorriu e disse-me “Eu empresto-lhe uma, não precisa de a comprar!” e não resisti a elogiar a tremenda hospitalidade grega, infinitamente superior à da vizinha Turquia. Ele riu-se, como quem entende muito bem do que eu estava a falar. Mesmo com a nossa extensão e a do senhor Spyros estendidas, ainda tínhamos uns dez metros de distância a separar-nos da fonte de energia, mas uma pequena extensão nossa salvou o dia, apesar dos meus comentários jocosos acerca da simplicidade amadora da mesma, já que mais se assemelhava a algo que se compra para ligar a torradeira na sala lá de casa.

Águas, sistemas e animais verificados, refrigeração a bombar porque não há nada como água fresquinha para manter a bicheza saudável, arejamento assegurado pelo arejador – de forma a poupar as garrafas de oxigénio – portas trancadas – mas com o cuidado de não morder o cabo da extensão –, disse aos motoristas para trazerem as suas malas e passaportes e saltarem para dentro do Skoda, que parou à porta da tal pensão escassos minutos depois. Fomos recebidos por mais um grego extremamente simpático que, para além de nos alugar dois pequenos apartamentos (um triplo e um duplo), ainda nos ofereceu chá e bolinhos, porque o nosso ar exausto não escondia quão necessitados estávamos de um pouco de carinho. Deviam ser perto das dez da manhã quando entrámos nos quartos e combinámos almoçar à uma da tarde. Logo a seguir atirei-me ao duche e esfreguei os dentes com toda a ferocidade que consegui, como se não houvesse amanhã. Quando saí, o Zé e Luís já ressonavam profundamente nas suas camas, mas este vosso criado tinha emails para enviar, incluindo mais um pequeno relato dos nossos progressos ao Pipo. O plano, agora, era desembarcar em Brindisi às oito da manhã de segunda-feira, conduzir até Civitavecchia e apanhar o ferry para Barcelona, onde chegaríamos na noite de terça e, portanto, estaríamos em Madrid na madrugada de quarta. Nada mau, para quem tinha dito ao espanholito que iria chegar no domingo à noite…

Entre mails e mensagens trocadas com a Nina, o tempo foi passando e, a dada altura, lembrei-me já nem sei bem do quê, que pretendia verificar no camião e dei lá um salto rápido, aproveitando para trazer a folha de registo da qualidade de água e olhar para os valores com atenção. Um dos problemas destes transportes é que a pessoa fica tão absorvida na resolução dos problemas constantes, que nem sempre é fácil respirar fundo, dar um passo atrás e olhar para a big picture. Tranquilizado quanto ao bem-estar dos bichos e excelente funcionamento do equipamento, regressei à pensão, preparado para dormir uma pequena sesta antes do almoço. Só havia um probleminha: já era uma da tarde.


Corazón di Grimaldi

Sem tempo para sesta, lá juntei o bando todo e fomos percorrendo a rua principal de Igoumenitsa a pé, em busca de um local simpático para saborearmos a primeira refeição com pés e cabeça em três dias. Admito que saboreámos intensamente a oportunidade de esticar as pernas, uma vez que íamos no nosso quarto dia de viagem rodoviária, embora os dois primeiros nos tenham feito pedalar uns quilómetros valentes na alfândega e fronteira. Encontrámos, entretanto, um lugarejo de ar aprazível, com mesas na rua e condições absolutamente perfeitas para o lindíssimo dia que estava. As leggings justas da empregada, aliadas ao ar entediado com que preparou a nossa mesa – única ocupada no estabelecimento todo – mereceram alguns comentários atrevidos por parte dos nossos amigos camioneiros, mas nada que cruzasse a linha do inaceitável, até porque a jovem não só não os ouviu, como também não os teria entendido se estivesse mais perto – ou pelo menos assim o desejei. Comemos iguarias locais, bem regadas por uma vinhaça também local, enquanto a Nina acompanhava os meus pais no tradicional almoço de domingo, ao qual faltei com muita pena. O meu pai enviou-nos uma fotografia da garrafa de vinho ‘Mártires’ que tinha aberto para ele e o meu irmão, em nossa honra. Tranquilizou-me também quanto ao estado das minhas comunicações, que seguramente seriam reestabelecidas em breve, uma vez que tinha pagado na véspera cerca de quatrocentos euros de saldo que gastei em excesso. Agradeci-lhe e prometi pagar assim que chegasse, mas aproveito já para agradecer a gentileza da MEO que, apesar do telefonema que fiz antes da viagem, dos telefonemas que eu e o meu pai fizemos durante a dita e apesar do pagamento que o meu pai fez poucas horas depois das comunicações morrerem, só me reestabeleceram a normalidade telefónica uns quatro dias depois de chegar a casa. Bem trabalhado, rapazes.

Depois de almoço decidimos ir buscar o carro e tentar comprar extensões eléctricas, uma vez que a paragem na BP nos mostrou que a nossa extensão não era tão longa quanto supúnhamos e assumimos que isso nos traria problemas no ferry dessa mesma noite. O problema é que todo o comércio de Igoumenitsa está fechado nos domingos como, aliás, em quase todos os locais. Parei em todas as áreas de serviço que vimos, que não foram poucas, mas não nos safámos. Confiámos que a Força trataria de nós durante a travessia do ferry e, uns bons vinte minutos antes das seis da tarde – hora a que, no terminal de passageiros, nos disseram que teria início a venda de bilhetes -, eu e o Filipe estávamos na fila para comprar os bilhetes para os veículos. Tínhamos apenas um outro camionista à nossa frente quando lá chegámos, mas, às seis e quarenta, hora em que as meninas da Grimaldi finalmente decidiram abrir as grades que davam acesso aos guichets, a turbe de camionistas no hall da Grimaldi já passava das quatro ou cinco dúzias. A fila era tudo menos ordeira, mas, entre cotoveladas e anarquia q.b., eu e o Filipe lá conseguimos preencher o documento com os dados do camião e pedi um bilhete para o dito e outro para o Skoda, indicando que seriam dois camionistas e três passageiros no veículo ligeiro. Disse ainda que precisaríamos de electricidade no navio e a menina indicou que não haveria problema. Impõe-se aqui uma nota sobre a maquilhagem e fardamento – diria eu um pouco excessivo – das meninas da Grimaldi, que facilmente eram confundidas com concorrentes ao concurso Miss Universo. Facto curioso, no terminal de passageiros, onde tínhamos estado antes, o cenário era mais ‘normal’. Até hoje admito permanecer algo intrigado com a política da família Grimaldi em colocar uma forte ênfase nos atributos estéticos das funcionárias da zona dos veículos pesados. Pensando bem, acabo de me aperceber que a escolha de meninas que estão atrás dos balcões nos cafés de todos os portos de pesca do país obedecem aos mesmos critérios. Curioso.

Já de bilhete na mão, percebi que só tínhamos o bilhete para o camião, pelo que tive de voltar à fila para perguntar onde estava o do Skoda. Pois claro que a rapaziada não gostou de ver o artista de calções e sandálias a meter-se à frente de todos e começaram a mandar bocas em línguas variadas, apesar de ter ali estado – com eles – durante mais de uma hora. Com pouca paciência para muito paleio, saiu-me um “I have a question. Do you know the answer?” e lá me deixaram sossegado. A top-model grimaldesca explicou-me que os carros ligeiros tinham de comprar o seu bilhete no terminal 1 e nós estávamos no 2. Lá fomos então e, poucos minutos depois, tínhamos os bilhetes para todos os veículos e pessoas nas mãos, incluindo dois belos camarotes, que planeávamos saborear intensamente durante a viagem de oito horas. Regressámos à pensão para não mais de meia hora de arrumação de maletas, fechar portátil e lavar os dentes uma última vez, porque achámos que seria aconselhável meter o camião na fila para entrar no ferry o mais rápido possível, uma vez que esta estava a adensar-se de forma abrupta.

Já na BP, demos a checada do costume aos sistemas, água e animais, que continuavam tão bem como em Istambul, quatro dias antes. Quando o camião já estava a trabalhar fui então ligar o inversor, que começou a apitar repetidamente e não arrancava. “Mau!…” Tentei novamente e o resultado foi idêntico. “Mau! Mau! Mau!…”

Entretanto dei aqueles passos que tradicionalmente se dão nestas situações: desliguei todas as fichas, percorri os cabos com os dedos e certifiquei-me que estava tudo bem ligado, voltei a ligar tudo, rezei três ou quatro pais-nossos, fingindo que acreditava no que estava a fazer e… só apitos e zero volts.

Estava na hora de engolir o orgulho e ligar ao Rui Guedes, nos Açores, que tinha sido a mente brilhante que esquematizou o belíssimo e salvador inversor e todo o restante equipamento acessório. Expliquei-lhe calmamente o que se passava e perguntei se já tinha passado por algo similar e, se sim, como resolveu. O Rui disse que não e sugeriu os mesmos passos que já tinha dado. Depois sugeriu-me espreitar no manual da máquina a que correspondia o ‘Erro 07’ que aparecia no écran e tive de engolir ainda mais orgulho e confessar que o manual não estava ali. Levei um leve raspanete por essa falha – e com razão – mas não demasiado intenso porque o Rui, tal como eu, sabe que, nestas situações, o foco tem de estar na solução e não no problema. Ligámos ao David e implorámos que fosse buscar o manual ao armazém da Flying Sharks, mas o David não estava em Peniche. Mas o Zé ligou logo de seguida ao Cristino, aluno meu que estava a estagiar connosco, que se prontificou de imediato a ir ao nosso estaminé. Entretanto, o Luís ligou a um amigo engenheiro electrotécnico que, pelo telefone, me começou a ajudar a despistar as causas do problema. Percebi de imediato que me ia dar bem com ele porque começou a conversa dizendo algo como “Então vamos lá a começar a eliminar variáveis, uma por uma, para percebermos que se passa”. Nada como lidar com uma mente científica quando se está à rasca.

Começámos por desligar o inversor do pack das seis baterias e ligá-lo a apenas duas, ainda ligadas em paralelo, mas o problema persistiu. Depois ligámo-lo directamente às duas baterias do camião e aí tivemos um pequeno sucesso, porque o inversor começou a debitar corrente, embora esta oscilasse entre duzentos e duzentos e cinquenta volts, de forma abrupta e desordenada. Claramente havia algo que não estava bem. Como não queríamos fritar a nossa filtração ultra-imprescindível, ligámos uma das pequenas lâmpadas de iluminação ao inversor, que se desligou de imediato. Entretanto chegou a imagem da página do manual que descrevia o ‘Erro 07’, que era bastante vaga e indicava que seria algo relacionado com a corrente que estava a entrar no inversor, provavelmente deficitária ou excessiva. Seguramente que não seria excessiva, por isso pedi ao Filipe para aumentar as rotações do ralenti do motor para o máximo possível, para dar uma carga valente nas duas baterias do maquinão, uma vez que o indicador revelava vinte e três ponto oito volts e não os vinte e quatro desejados. Não passaram muitos minutos até estarmos nos vinte e quatro, mas um novo teste voltou a só dar em apitos e nada de voltagem. Entretanto eram nove e tal da noite e o ferry partia às 23h59, detalhe que não deixava margem de dúvida a ninguém.

Só me restava perguntar ao senhor Spyros se, por algum milagre, teria um inversor ou, por algum outro milagre, conheceria alguém que tivesse. O nosso estimado salvador ligou de imediato a um amigo, mas, apesar da conversa ser em grego, percebi que não nos íamos safar. O amigo aconselhou-nos a resolvermos o caso em Brindisi, na manhã seguinte, onde seguramente teríamos tudo aquilo de que precisávamos. Agradeci-lhe calorosamente a ajuda durante aquele dia e os conselhos que nos deu, antes de me despedir, caminhando em passo rápido para o camião, onde delineei um plano maquiavélico com os rapazes. A hora já ia adiantada, por isso eu, o Luís e Armando íamos já a correr para a fila dos camiões e implorar que o nosso pudesse passar à frente de todos, de forma a ser ligado à corrente já dentro do camião. Entretanto o Zé ficaria com o Filipe, que iriam tentar ultrapassar toda a gente na fila e enfiar o bicho dentro do ferry o mais rápido possível. Era um plano impossível, tendo em conta que a fila de centenas de camiões, à espera de embarque, já se estendia por mais de um quilómetro na autoestrada que dava acesso ao cais, mas avançámos na mesma.

Os próximos momentos foram de intensidade evocativa da luta titânica que tive de travar com o palerma do piloto turco do segundo Airbus 300 no nosso mega-charter para Istambul em 13 de dezembro de 2010, de que alguns dos leitores mais assíduos se recordarão. Começámos por ir directo ao portão que dava acesso ao cais a carros ligeiros, tarefa que não foi fácil porque a fila já estava monstruosa, mas lá me enfiei o mais possível e deixei o Luís e Armando no carro, enquanto fui falar com um tipo de casaco verde florescente e que parecia mandar alguma coisa. Comecei com a frase “Good evening, I really need your help…” e depois expliquei, de forma sucinta, que tinha um camião com “live sharks” – e apontava para o logotipo da t-shirt – que tinha o equipamento de filtração avariado, pelo que precisava de entrar no navio o mais rápido possível e ligar o camião à corrente eléctrica local.

Um outro tipo juntou-se ao primeiro e fizeram-me aquela cara que já conheço bem de outras aventuras e que é a cara de quem já ouviu muita coisa, mas aquela era uma novidade. Não me despacharam de imediato, mas disseram-me que a decisão não podia ser tomada por eles, que eram simples operadores do cais, mas sim pela Grimaldi, empresa proprietária e operadora do navio. Aconselharam-me, por isso, a ir ao terminal de pesados e expor o caso. Voltei ao carro e, explicando o que se passava aos rapazes, saímos da fila e acelerámos em direcção ao terminal. Eram umas dez e meia da noite.

A (tal) menina do guichet de pesados – que claramente tinha aproveitado para, entretanto, retocar o batom vermelhíssimo -, já praticamente vazio porque todos os camiões tinham o seu bilhete comprado e estavam na fila, ouviu-me com atenção e pegou de imediato no telefone, explicando a situação a um colega. Depois passou-me um papel com o número ‘16’ e disse-me “Diga à entrada do cais que o vosso camião pode embarcar de imediato e deve ir para o cais 16.” Agradeci-lhe com todos os floreados que me vieram à mente e voei de volta para o carro, que acelerei em direcção à fila. Voltei a conferenciar com os rapazes do portão, que entenderam a situação e disseram-me “Diz ao camião para vir para esta fila”, sendo que era a dos ligeiros, que tinha infinitamente menos veículos do que as filas dos pesados, que enchiam umas doze faixas antes do portão de acesso ao cais e mais se assemelhava à praça de portagens da Ponte 25 de Abril num final da tarde de verão, ou por volta das oito da manhã de todas as segundas, terças, quartas, quintas e sextas-feiras.

Foi então que telefonei ao Zé e lhe expliquei o caso. Ele disse-me que estavam muito para trás na fila e não sabia como ultrapassar a dita. Disse-lhe para usar todos os truques possíveis, incluindo meter os quatro piscas e avançarem pela faixa de emergência. “É o que for preciso, maluco! É preciso é que venham aqui para o portão dos ligeiros.”

Entretanto o nosso carro ia avançando lentamente na fila e, tendo em conta que eram onze da noite, decidimos avançar, confiantes que a situação estava moderadamente sob controlo e o navio não arrancaria antes daqueles camiões todos – com bilhetes comprados – serem carregados. À nossa frente estavam dois motoqueiros que aparentemente estavam a desobedecer a alguma instrução que o guarda lhes tinha dado, pelo que este os mandou desmontarem das motas, removerem os capacetes e preparou-se para os vistoriar de alto a baixo. Em circunstâncias normais teria ficado irritado com a demora que claramente tinha pela frente. Naquele momento, contudo, acolhia de rasgado sorriso nos lábios todas as demoras que permitissem ao camião aproximar-se de nós, uma vez que a distância que nos separava ainda era enorme. Apesar de tudo, tínhamos qualidade de água estupenda, oxigénio a debitar para dentro dos tanques a partir das garrafas – porque o arejador não funcionava sem o inversor – e a verdade é que, apesar do stress intensíssimo, a situação estava controlada. Na medida do possível.

Quando os motoqueiros foram finalmente autorizados a avançar, foi a nossa vez de mostrarmos os bilhetes pessoais e o do carro, sendo que tínhamos verificado cuidadosamente na BP, antes de nos separarmos, se todos tínhamos os respectivos bilhetes quando a nossa missão alucinante ditou que nos separássemos. E quem estava no casinhoto da polícia local, mesmo ao nosso lado, quando entrámos no cais de embarque?

O pai e criança que tínhamos visto mais cedo, que claramente tinham tentado a sua sorte entrando ilicitamente para dentro do ferry, mas foram catados pelas forças da lei. Não lhes invejei os tempos que tinham pela frente; nem os que seguramente já tinham para trás.

Poucos minutos depois estávamos enfim no lado marítimo do cais e dirigimo-nos à área que nos foi indicada, curiosamente o tal ‘cais 16’ para onde o camião também se deveria dirigir. Liguei ao Zé a dizer que estávamos já dentro do cais e ele disse-me que estavam perto do portão de acesso. “Boa! Isto está-se a alinhar, rapazes!” contei ao Luís e Armando.

Já junto do belíssimo e enorme navio, a fila de ligeiros estava parada enquanto dezenas – diria mesmo centenas – de pesados manobravam e entravam no enorme navio de marcha-atrás, subindo uma rampa inclinada. Era uma operação monumental e senti um formigueiro na espinha por ter a oportunidade e privilégio de ali estar. Acendi um cigarrito, para acalmar os nervos, e apreciei aquele curto momento de tranquilidade, antes que chegasse a próxima tempestade.

A fila de ligeiros foi então impelida a avançar e lá fomos em fila indiana, também nós entrando pela popa do navio e depois subindo uma rampa que nos levou ao convés superior, que era exterior. Não seriam mais de vinte, as viaturas ligeiras estacionadas à nossa volta. Os camiões, contudo, pareciam não ter fim e entravam ritmadamente pela enormíssima porta traseira do navio, que também servia de rampa de acesso. Liguei ao Zé e expliquei que já estávamos no navio. Ele disse-me que estavam mesmo a chegar ao portão. “Isto está no papo!” permiti-me pensar, enquanto acendia outro cigarro e ia olhando para o portão, que conseguia ver à distância, do topo do colossal navio.

Tocou então o telefone e vi que era o Zé no mostrador, porque entretanto já tinha abusado do telefone do Filipe e já tinha gravado os nomes e contactos de todos os membros da equipa. Era efectivamente o Zé, com um tom de voz que gritava “Temos sarilho.”

Aparentemente os rapazes do portão estavam furiosos com o camião por estar na fila dos ligeiros e estavam a mandá-lo dali para fora. Disse ao Zé “Mete o telefone no ouvido desse urso!” e lá lhe refresquei a memória de quem era: “Somos os gajos do camião de live sharks e temos de o ligar à corrente aqui no navio, maluco! Tivemos esta conversa há meia hora, se tanto, chouriço!” Milagrosamente, o tipo lembrou-se e lá deixou passar o camião! Eram onze e quarenta da noite quando o camião passou os portões, mas ainda tinha de parar em cima da balança, mas sabíamos que estávamos perfeitamente dentro do peso autorizado, apesar dos quatro tanques com quase quatro metros cúbicos de água cada um, cinco garrafas de oxigénio com uns belos cinquenta quilos cada, baterias, gerador, e sei lá mais o quê.

A dez minutos da hora de partida do navio – recordemos, 23:59 – filmei o nosso camião a entrar pela retaguarda do navio e só aí finalmente respirei fundo. Mas não havia muito tempo para respirar, porque estava na hora de descer não sei quantos decks e ir ao encontro do Filipe e Zé, para que pudéssemos dar um check rápido nos sistemas e animais, bem como ligar a filtração aos 220 volts do navio. Lá tive a feliz ideia de pegar na mochila e metê-la às costas, porque as portas de acesso ao deck superior foram fechadas minutos depois de começarmos a descer em direcção ao porão onde centenas de camiões tinham acabado de ser carregados. O Armando já conhecia os cantos à casa, uma vez que tinha apanhado o mesmo ferry na direcção oposta precisamente uma semana antes, e guiou-nos pelo labirinto de escadas e corredores que pareciam não ter fim. Finalmente no imponente porão dos camiões, fiquei de imediato impressionado com a precisão do estacionamento das máquinas, cujos espelhos retrovisores não distavam mais de um centímetro do camião imediatamente adjacente. Tirei inclusivamente fotografias do mais eficiente estacionamento que jamais vi, porque sabia que ninguém acreditaria em mim quando contasse!

O maravilhoso Iveco da TPO, com o nosso tubarão voador pintado de lado, foi localizado em menos de nada e, a seguir aos abraços ao Filipe e Zé, que não víamos há umas três horas, mas mais pareciam três meses, dirigi-me a um dos funcionários da Grimaldi, de macacão, e pedi-lhe 220 volts, notando que os camiões que se ligavam à corrente faziam-no através de possantes fichas de 380 volts. Impõe-se aqui a ressalva de que o Filipe me tinha alertado, dias antes da partida, para a necessidade de levarmos um adaptador eléctrico que convertesse os 380 volts trifásicos do navio para os nossos 220 volts monofásicos, uma vez que aparentemente os navios funcionam com essa corrente. Na altura o David ainda falou com um electricista em Peniche, que nos despachou sem grande paciência, alegando que, se o navio tem 380 volts, seguramente também terá 220. A verdade é que os dias antes da partida foram tão incrivelmente intensos que, no meio de tanta crise que teve de ser solucionada em tempo recorde, quando o electricista disse isto ao David e este me passou a mensagem, a reacção imediata de ambos foi “Bom, o homem lá deve saber, certo?”

Não imaginaria eu, quando displicentemente chutei essa informação para canto, quanto sofreria à conta desse chuto naquela noite de 21 de outubro de 2018, com todos os operários do possante navio a repetirem-me: “Aqui só 380 volts!”, ou melhor: “Qui abbiamo solo trecentottanta volt.” Facto curioso, diz-se que conseguimos reunir força sobre-humana em momentos de grande necessidade, certo? Pois eu, nessa noite, consegui aceder aos arquivos mais recônditos da minha memória, particularmente as pastas onde estavam enterrados muitos episódios de ‘La Piovra’, que devorava durante a universidade, na televisão a preto e branco do sótão que aluguei ao Zé Figueiras, em Gambelas. Facto ainda mais curioso, na altura achei que era uma excelente oportunidade de aprender italiano e dei por mim a tirar notas, sendo que isso ocorreu em 1990 e, quase trinta anos depois, dei por mim a implorar aos gajos:

Prego signori, soi transportando di squali vivanti e ai besogno molto urgente de docientevinte volti per la filtrazioni del acqua”. Não faço a mais pequena ideia de quão horrível está este pequeno segmento italiano que acabo de escrever, mas o que é certo é que os tipos me entendiam perfeitamente e repetiam incessantemente que só tinham 220 volts nos pisos de passageiros, bem acima do nosso. Pedi então que se estendesse uma extensão de um desses pisos cá para baixo (recordando-me que as nossas eventualmente não seriam suficientes…), perante o olhar esgazeado dos meus interlocutores, que pareciam dizer “Mas este tipo ‘tá doido?”

Ma no ei possibili, signori!” tornou-se na frase mais pronunciada dentro da embarcação, até que apareceu um figuraço de olhão azul e cabelo louro, com ar de estrela da Cinecittà, não fosse a modesta altura, que não devia ultrapassar o metro e sessenta. Este cavalheiro foi o primeiro que me pôs a mão no ombro e me pediu para explicar o que se passava. Expliquei em italiano e rapidamente me disse que podia falar em espanhol, que entendia bem as duas línguas. Gerou-se um clima de rapport imediato e os meus olhos – bem como os do Filipe, Armando, Luís e Zé – iluminaram-se, cravados naquele simpático gnomo, que claramente nos ia resolver o problema!

No final da minha explicação, contudo, terminou com um “Lo siento, di corazón!…” com as mãos apoiadas no peito “…pero is not possible…”. Explicou-me ainda que há um motivo pelo qual os navios só operam a 380 volts e que tem a ver com segurança, porque aparentemente a corrente trifásica é mais estável e causa menos faíscas, sendo que faíscas são desincentivadas num vasto espaço com milhares de litros de gasóleo dentro de depósitos e uma atmosfera carregada de vapores combustíveis. Entendi, finalmente, que teria de tomar rapidamente a decisão de seguir viagem sem filtração – só com oxigénio – ou fazermos todo o percurso por estrada, atravessando a Albânia, Montenegro, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovénia e Áustria, antes de entrarmos finalmente em Itália. Na minha cabeça a decisão já estava tomada, mas ainda havia uma última cartada, porque o nosso amigo louraço sugeriu falarmos com o supervisor da carga.

Desci a rampa atrás dele até terra firme, gastando consideravelmente menos passos, para falar com um figuraço que destoava sobremaneira do primeiro, já que apresentava um porte intimidador, evocativo de um guerreiro viking, com o mesmo olhar petrificante e tudo. Expliquei o meu caso, desta vez em inglês. Nem consegui chegar ao fim da frase e já ele me respondia “Não há um único navio no mundo que opere 220 volts no compartimento de carga.” Perante a minha insistência, que batia nas teclas (1) a menina do terminal disse que era possível, e (2) sem filtração os bichos morrem, o viking lá me disse para falar com o comandante, que estava mesmo ali ao lado, também ele em terra.

Este tinha um ar ainda menos aprazível e, mal comecei a explicar o que se passava, já o tipo me cortava o pio com “Please get to the point, I don’t have time for this…” naquele sotaque carregadíssimo de italianicidade a que já nos habituámos nos filmes. Explicação abreviada para “I need 220 volts or the fish will die.”o comandante respondeu de forma ainda mais abreviada:

It’s not possible. Do you want to stay here (apontando para o chão), or go? We must leave now.”

Olhei para ele e respondi “We will go…” subindo a seguir a rampa para dar a notícia humilhante aos meus rapazes, enquanto o louro simpático repetia “Lo siento mismo, di corazón!”

Sistemas verificados em tempo recorde, já com toda a tripulação técnica a mandar-nos sair dali para fora, oxigénio ligado na posição ‘2’, ou seja, a debitar 2 litros por minuto, deixámos as raias entregues ao seu destino durante as oito horas de viagem, acreditando furiosamente que a nossa ronda de compras italianas, na manhã seguinte, incluiria um novo inversor, porque os 2 litros por minuto de oxigénio, durante a noite, garantiam que as garrafas não aguentariam os longos quilómetros que ainda tínhamos pela frente, pelo que o arejador – movido a 220 V – era uma necessidade imperiosa.

Já na parte de passageiros, recebemos as nossas toalhas e chaves dos camarotes, onde depositámos as tralhas, antes de nos juntarmos ao Filipe e Armando para jantar. Antes do jantar, contudo, ainda desci novamente ao piso dos camiões, depois de ver várias fichas de 220 volts na nossa cabine e em praticamente todos os cantos do piso de passageiros.

Percebi imediatamente que estava a pisar o risco quando entrei no vasto compartimento, repleto de camiões literalmente colados uns aos outros, e estava cem por cento sozinho, sem mais nenhuma alma à volta. Fui-me guiando pelo som da enorme porta, que também era a rampa de acesso dos camiões, que estava claramente a ser recolhida. Pensando com os meus botões “Não me deixam ligar a filtração, mas também não me vão impedir de sacar umas gandas fotos!”, lá me posicionei num parapeito onde efectivamente tirei belíssimas fotos da gigante porta levadiça, qual castelo medieval, segundos antes de um gajo de macaco laranja soprar num apito e apitar para mim.

Fiz aquele sinal com a mão internacionalmente conhecido como “Ok, já me ponho a mexer…” e estuguei o passo para dentro das escadas, sentindo os olhos do macaco laranja atrás de mim. Ainda tive tempo de sacar mais uma fotografia rápida à interminável fila de camiões colados uns aos outros, antes do laranjinha ralhar comigo e dizer-me que não podia estar ali. Fiz-me de palerma e, sonhando com um milagre natalício, pedi-lhe se podia ligar uma extensão de 220 volts, que tinha no camião, a uma tomada deles. “Pode ser que este palerma me oriente isso sem perguntar nada a ninguém e já está!” atrevi-me eu a pensar, mas o meu lindo sonho de outono caiu por terra quando o gajo aperta o botão do rádio, que tinha ao ombro, e pergunta a alguém do outro lado se podia fazê-lo. O meu auto-didactismo durante os episódios de La Piovra permitiu-me traduzir serenamente a voz italiana que lhe respondeu pelo rádio, mesmo com todo o ruído que se experimentava na escada técnica onde estávamos:

“Eh pá, tu diz a esse chato-de-merda do biólogo que não há 220 volts para ninguém e ele que volte para o camarote ou isto ainda acaba mal para ele!”

Ok, molto grazie!” despedi-me eu, já a subir as escadas para o piso de passageiros.

Encontrei o resto da rapaziada e, depois de uma curta viagem exploratória, eu, Zé, Luís e Armando pedimos quatro cheeseburgers a uma grega de ar muito mal-encarado, perante um balcão com comida pré-preparada em embalagens de plástico, pronta a ser aquecida, bem menos atraente do que estávamos à espera. Logo a seguir a nós, um motorista enorme de sessenta e tal anos, que me fazia lembrar o Hulk Hogan, arrancou-lhe um rasgado sorriso e pediu-lhe algo em grego, entre grande converseta muito animada. Pela resposta dela e cara dele percebi de imediato que lhe apetecia um cheeseburger e nós tínhamos pedido os últimos quatro. Mas depois de nova algaraviada grega, deram um high-five e percebi que um de nós – calhando essa honra ao Armando – ia comer outra coisa qualquer, para que o Hulk comesse o cheeseburger.

Senti uma onda de irritação profunda subir-me desde as entranhas até à ponta dos cabelos, invadindo-me de uma onda de humilhação tão tremenda quanta a vontade de enfiar as cabeças do Hulk e da grega no forno micro-ondas e, em seguida, esmagá-las com uma bilha de butano, antes de largar fogo ao par de massas encefálicas mal-cheirosas… Senti ainda a tristeza profunda de não ter aquele gene, que muita falta me fez em tantas vezes, que me levaria a armar a mãe-de-todas-as-confusões, que só terminaria quando o Hulk chorasse num canto, frente a um Bolycao ressequido, e o Armando tivesse o seu merecido cheeseburger à frente. Tristemente, a minha temperança excessivamente lusitana impeliu-me a guardar o rancor internamente, tolhido de embaraçosa e quieta derrota.

Comemos em silêncio, temendo pela vida das raias, embora convictos que a qualidade de água se manteria estável, até porque adicionámos rapidamente uma dose de químicos mesmo antes de fecharmos a porta do camião e correrem connosco dali para fora. O momento sorumbático eventualmente deu lugar a alguma operacionalidade, já que os eventos recentes ditavam que o ferry de vinte e uma horas entre Civitavecchia e Barcelona nos estava vedado, porque a proibição de usar 220 volts era seguramente algo que nos perseguiria em todos os ferries. E se acreditava que a qualidade de água se aguentaria perfeitamente estável durante oito horas porque, afinal de contas, estávamos a verificar a água de seis em seis horas e esta não parava de melhorar, o mesmo já não se podia dizer num intervalo de vinte e uma.

Esta mudança de planos despoletou no Filipe um sentimento repentino de preocupação, porque percebeu de imediato que dois condutores apenas não conseguiriam conduzir os dois mil e quinhentos quilómetros que separam Brindisi de Madrid, sem a temível paragem de nove horas para descanso obrigatório. A única solução era adicionarmos um condutor à operação, algures na zona de Milão, pelo que o Filipe se agarrou ao telefone e começou a carburar esse salvamento com o chefe Sérgio, em Olhão.

A seguir ao jantar acompanhei o Zé numa cigarrada na noite escura exterior, onde estava um gelo de bater o dente. Minutos depois fomos para o camarote, onde eu, Luís e Zé nos dividimos rapidamente pelas quatro camas disponíveis nos dois beliches. Despachei o meu maravilhoso duche, com uma muito necessária esfregadela valente das dentolas e, segundos depois, estava enfiado na deliciosa cama, com o portátil no colo, enquanto copiava música potente para o telemóvel. Afinal de contas, a brutalíssima playlist do jovem Luís merecia alguma concorrência por parte do quarentão, que pretendia defender a honra dos homens de meia-idade em matéria de gostos musicais.

Já com um olho para cima e outro para baixo, abrimos a porta ao Filipe, que já tinha conversado com o chefe Sérgio e trazia novidades não particularmente positivas. O staff da TPO estava todo na estrada ou de férias, não havendo ninguém disponível para nos salvar no dia seguinte. O Filipe perguntou se seria assim tão mau fazermos a dita paragem de nove horas e admito que, sabendo perfeitamente que essas nove horas adicionais não colocariam a vida das raias em risco, tive de puxar dos meus privilégios de cliente e implorar-lhe que arranjassem uma solução alternativa, que não adicionasse nem mais um minuto à viagem, que já estava a ser bem mais longa do que inicialmente previsto. O Filipe esfregou a cabeça e despediu-se com um “Ok, amigo João… A gente arranja qualquer coisa…” Acho que ainda senti um humedecimento das retinas, com a capacidade de trabalho desta malta extraordinária, antes de apagarmos as luzes do camarote e a minha luz interior se apagar de forma terminal, como nunca.

Segunda-feira, dia 22 de outubro de 2018. Acordei com o maldito despertador, que programei para as sete da manhã, uma vez que o navio iria atracar pelas nove. Digo “maldito” porque esse excesso de zelo foi completamente desnecessário, uma vez que um punho furioso veio arrancar-nos do torpor em que estávamos uns minutos depois, estava eu em pleno duche.

Admito que as aproximadamente cinco horas de sono que colhi no leito marítimo do ferry, embalado pela gentil ondulação que se fazia sentir nas fronteiras dos Mares Adriático e Egeu, foram as mais tranquilas de que tenho memória. Não só não acordei, como não sonhei, nem sequer creio que me tenha movido um milímetro sequer. Simplesmente apaguei para o mundo e acordei no camarote escuro ao som do diabólico despertador, tão entorpecido que levei uns bons segundos para entender onde estava e que diabo fazia ali.

Mas o duche trouxe-me de volta à realidade e, minutos depois, já saboreávamos um belo pequeno-almoço continental, repleto de ovos, bacon, croissants, salsichas miniatura, sumo de laranja, café e tudo a que tínhamos direito pelos colossais nove ou quinze euros cobrados por pessoa. Ofereci o pequeno-almoço à equipa de cinco pessoas e sentámo-nos numa mesa para debater o dia que tínhamos pela frente. Primeiro ponto e mais prioritário de todos: experimentar novamente o inversor, não fosse o caso de uma bela noite de sono o ter restabelecido tanto como tinha restabelecido a equipa. Em caso de falha continuada do mesmo, teríamos de arrancar com a nossa bela Geraldina, rezando para que os muitos meses – anos, aliás – de paragem, a mantivessem em funcionamento tão prestável quanto aquele com que nos presentou em 2010, por ocasião do tal transportão de três contentores dos Açores para Lisboa, antes da partida para Istambul. Se a bela Geraldina falhasse, teríamos de arranjar maneira de comprar novo inversor, esperando fervorosamente que a não muito conhecida cidade de Brindisi nos oferecesse essa possibilidade.

Viemos para a rua depois de comermos, onde celebrámos a excelente notícia que o Filipe tinha acabado de receber de Olhão: o fantástico Barbosa-pai, um dos condutores que me tinha levado, ao Rui, David e duas mil cavalas até Boulogne no início de agosto, estava de férias mas, consciente da importância do pedido que lhe era feito, concordou em voar para Milão nesse mesmo final de tarde e conduzir o camião até Barcelona, enquanto o Filipe e Armando descansavam no nosso carro. Olhando para o mar e a costa italiana que se ia adivinhando, lá deixei que o vento me lavasse o rosto da emoção que me assaltava, porque faltava pouco tempo para abrirmos a porta do camião e vermos se tínhamos tomado a decisão certa na noite anterior.

Já dentro do porto, seguimos a populaça quando esta começou toda a dirigir-se para os veículos ligeiros, no convés superior, enquanto os motoristas seguiam para o convés inferior. “Já nos vemos lá fora, malta!” despedimo-nos.

No convés superior – e exterior – ignorei a azáfama dos veículos ligeiros, que se começavam a acumular junto à rampa por onde tínhamos subido e, portanto, por onde iríamos descer. Apesar da imobilidade do nosso carro estar a dificultar os mais apressados, ignorei as suas pressas e deixei-me ficar junto ao corrimão a ver os grandes camiões que começavam a sair, uma vez que o nosso tinha sido um dos últimos a entrar e, portanto, seria dos primeiros a sair. Saquei uns belos vídeos com o telemóvel do imenso tubarão a descer a rampa gigante até colocar os pneus em Itália e só então me apressei para o Skoda, para depois ficar parado atrás dos restantes ligeiros apressadinhos. “Tanta pressa, não sei para quê…” pensei eu.


Geraldina, mi Amorrrrr!!

Já em terra firme, parámos atrás do camião, encostado numa zona lateral onde não incomodava ninguém. O sorriso rasgado do Armando, e porta traseira aberta, disseram-nos de imediato que as raias estavam bem. Rejubilantes, parámos o carro e atirámo-nos ao plano maquiavélico delineado a bordo. O Zé e Luís tomaram conta da verificação da qualidade de água, enquanto eu e os motoristas tentámos arrancar o inversor, depois de pormos o feroz Iveco em marcha. Infelizmente seguiram-se apitos e mais apitos, pelo que nem hesitámos um segundo antes de nos atirarmos à pesadíssima Geraldina e a colocarmos no chão, tarefa que envolveu complexa coordenação, particularmente por parte deste vosso amigo, que estava de sandálias e não queria passar a manhã num hospital italiano, com um pé ensanguentado.

Geraldina segura no chão, verificámos o depósito de combustível, que estava praticamente cheio. “Ufa!…” Vistoriámos o painel de controlo, que parecia bem simples e, depois de ligarmos os dois interruptores necessários, só faltava mesmo era dar à chave e esperar ansiosamente pelo arranque do poderoso gerador. Sem um único soluço, depois de meses negligenciada num contentor em Peniche, a grande Geraldina arrancou em grande estilo, perante uivos e cantares felizes de cinco emocionados tugas!

“Ah, ganda Honda!! Estes japónicos bem sabem!! Se isto fosse americano estávamos bem lixados!!”  dissemos todos, embora usando um outro adjectivo, de natureza mais fecundativa.

“Muito bem, vamos a isto!”disse eu, já com a lista de compras em riste, a revê-la cuidadosamente, de forma a garantir que não voltávamos das compras sem nenhuma falta. Precisávamos de tubo para o escape da Geraldina, uma vez que o tubo tradicionalmente usado é vertical e só funciona em contentores open top, cobertos por lona, cujo canto é desviado ligeiramente, para permitir a passagem do grande periscópio que canaliza os terríveis gases de combustão para fora. Uma vez que não tínhamos trazido propositadamente esse tubo de escape, havia que adquirir acessórios metálicos para atarraxar o escape que iríamos comprar à nossa bela Geraldina. Precisaríamos ainda de uns parafusos para a segurarmos firmemente ao compartimento de carga inferior do camião, onde já tínhamos visto que iria viajar até Madrid. E, finalmente, precisávamos de uma extensão eléctrica e arame em abundância, para prendermos a dita à estrutura inferior do reboque, até que a mesma entrasse na galera de carga, fornecendo deliciosos 220 volts às nossas bombas que, entretanto, já bombavam ferozmente, à conta da maravilhosa Geraldina.

Qualidade de água controlada, eu e o Armando teclámos ‘Leroy Merlin’ no telefone e deixámos o Google Drive guiar-nos durante vinte minutos até atestarmos o carrinho de compras com todos os materiais de que necessitávamos. Ainda parámos num supermercado para comprarmos umas bolachas, águas, cajus, amendoins e bicarbonato de sódio, que também estava a terminar. Afinal de contas, estávamos em trânsito há quatro dias e todos os materiais estavam a chegar ao fim, embora ainda tivéssemos dois dias pela frente. Mas o arejador já estava a debitar maravilhoso ar para dentro dos tanques, pelo que as garrafas de oxigénio foram fechadas e sabíamos que ainda tinham gás para emergências, embora achássemos que não era humanamente possível acontecer absolutamente mais nada na maldita viagem.

Ensopado até ao tutano e com os pés encharcados graças a um dilúvio que se abateu sobre nós e se acumulou precisamente onde tinha estacionado o carro, conduzi apressadamente de volta ao camião onde, encasacados, serrámos o tubo para o escape. O Filipe voltou a surpreender-nos, explicando a todos a forma correcta de se usar a serra metálica que tínhamos acabado de comprar. Ao contrário do que eu supunha, o corte só se faz no regresso da lâmina e não quando esta avança. Perguntei então ao Filipe “Maluco, mas há alguma coisa que tu não saibas fazer??” e, depois de rirmos um bocado, rematei com “O meu querido amigo tem consciência que, depois desta viagem, tu e o Armando passaram a ser os nossos motoristas TPO oficiais, certo??”

Depois de tudo pronto, só faltava parar temporariamente o gerador e colocá-lo num exíguo compartimento lateral do camião, onde um enorme – e pesadíssimo – pneu sobresselente teve de ser afastado para dar lugar ao gerador. Assim que olhámos para a altura do compartimento, contudo, percebemos todos em simultâneo que era mais baixo do que o gerador.

Ultrapassado o desânimo geral, foi o Filipe que agarrou num pedaço de corda e foi verificar as duas alturas, confirmando que o gerador cabia no compartimento, mas teríamos de remover o pequeno painel lateral inferior do dito, que tinha uns dez centímetros de altura. Chaves na mão, lá começámos a desapertar parafusos, até o extremo dianteiro do taipal ficar solto. Havia apenas que o inclinar para fora até ficar tão baixo que permitiria – à rasca – a entrada do gerador. A tarefa parecia fácil, mas o diabo do painel era rijo e, pior ainda, tinha um topo bastante mole e oco, o que significava que, quando colocámos uma potente chave-inglesa para servir de alavanca, esta afundava pelo bordo dentro e revirava-se, sem puxar o painel consigo. Foi aí que o meu cérebro físico me levou a colocar uma segunda chave-inglesa dentro do dito bordo, fornecendo um bom ponto de apoio à sua amiga que, com o tubo de escape a alongar-lhe o cabo, torceu o painel até este não oferecer resistência à entrada do gerador.

Já só faltava furar uns buracos na chapa de alumínio que servia de chão ao compartimento de carga, aparafusar solidamente a Geraldina à base, amarrar a extensão à galera com o arame que comprámos e, finalmente, arrancar novamente a Geraldina e aplaudir ferozmente quando todas as bombas começaram a trabalhar dentro do camião.

Seriam duas da tarde de segunda-feira e o dia estava cinzento e chuvoso em Brindisi, mas dentro da cabine do incansável Iveco e do habitáculo do confortável Skoda, cinco sorrisos aceleravam ao longo dos mil quilómetros que nos separavam de Milão.

É curioso que, normalmente, lembro-me de detalhes ínfimos nas nossas aventuras. Dessa segunda-feira, contudo, não tenho uma única memória depois de arrancarmos de Brindisi com os sistemas funcionais, até ser noite cerrada e o Armando e Filipe seguirem depois de uma paragem perto de Milão, onde estudámos as estradas que iriam usar para entrar em França, enquanto conduzia o Skoda até ao hotel onde o Barbosa já esperava por nós.

Seria meia-noite quando o apanhámos e umas boas três ou quatro da manhã quando finalmente nos colámos à traseira ‘Live Sharks and Rays’. O amanhecer de terça-feira, dia 23 de outubro, ocorreu mais ou menos quando cruzámos a fronteira com a França, desta vez com o Filipe e Armando no Skoda, enquanto o grande Barbosa impelia o Iveco para oeste sem perdão.

Sempre a comermos quilómetros, surpreendeu-nos o facto de, a meio da manhã, notarmos que o gerador estava parado, quando estacionámos numa área de serviço para ver se estava tudo bem com os sistemas, animais e água. “Hmmm… Estranho… Porque diabo terá parado?…” pensámos todos em coro, depois de verificarmos – com um espelho do Filipe, porque o mostrador estava mesmo no topo – que o depósito de gasolina da Geraldina estava mais de metade cheio. Arrancou sem qualquer dificuldade quando demos à chave e lá seguimos viagem, ligeiramente apreensivos mas conscientes que já não eram muitas as horas que nos separavam do destino.

Numa paragem mais tarde, o gerador estava novamente parado e notava-se a descida nos valores de oxigénio, uma vez que a paragem do gerador implicava a paragem do arejador. À cautela, e cientes que a viagem terminaria dentro de umas catorze ou dezasseis horas, voltámos a ligar o oxigénio e a comer mais uns quilómetros do sul de França, combinando que a próxima paragem já seria em território espanhol.

Seriam umas seis ou sete da tarde quando parámos na povoação espanhola de Figueres para atestar os depósitos com gasóleo espanhol, infinitamente mais barato que o francês. O gerador estava novamente parado, o que levou a equipa a desmoralizar uma vez mais. Contudo, percebemos que a povoação oferecia diversas indústrias, pelo que nos atirámos à tarefa de comprar uma nova vela para a Geraldina, convencidos que seria esse o problema. Enfiei-me no Skoda com o Luís e Filipe e, depois de batermos com o nariz na porta em três estabelecimentos, no quarto lá tivemos uma alma que olhou para a nossa vela e nos disse:

Hombre, pero vostra bujía está buena.” o que significava que a nossa vela estava boa. Mesmo assim, trouxemos outra idêntica, tarefa que não foi fácil porque el caballero meteu-nos nas mãos um saco com umas mil velas e rapidamente percebemos que não é apenas a forma que difere, é também a potência, comprimento e múltiplas outras variáveis.

De volta ao camião, colocámos a vela nova e a Geraldina arrancou prontamente, embora com ligeira hesitação inicial, o que nos levou a ponderar que o señor bujía provavelmente estava coberto de razão. Foi aí que decidimos parar e tentar raciocinar um pouco… O gerador funcionou sem qualquer interrupção durante o trajecto italiano da viagem, num dia frio e chuvoso… Mas estava a parar intermitentemente durante o trajecto franciú, bem mais solarengo e quente.

“Calor!” gritámos todos ao mesmo tempo, antes de irmos buscar um tubo que prendemos à porta lateral do compartimento dentro do qual estava a Geraldina, que provavelmente parava devido a aquecimento excessivo.

“Ah, que grandes burros que somos!” pensámos, segundos antes de nos montarmos nos veículos e rumarmos a Barcelona, onde o Barbosa ia embarcar no voo de regresso a casa. Entretanto acordei com o Filipe e Armando a rota que iam seguir para Madrid, para que pudessem continuar a viajar enquanto o Skoda ia rapidamente ao aeroporto.

Acompanhei o nosso Barbosa salvador durante o check-in e despedi-me calorosamente dele já rente à maquineta do raio-x, porque, entretanto, tinha percebido que aquele seria o segundo voo do nosso motorista salvador, sendo que o primeiro tinha sido no dia anterior, de Lisboa para Milão.

Raspámo-nos do estacionamento rápido do aeroporto uns meros trinta segundos antes de ser necessário pagar e colocámos finamente ‘Madrid’ no GPS, que distava seiscentos quilómetros de nós. Eram umas dez da noite e atrevi-me a dizer ao Pipo que chegaríamos pelas quatro da manhã, uma vez que o camião já tinha comido uns belos quilómetros e estava bem à nossa frente.

Os últimos quilómetros foram percorridos com grande tranquilidade porque tínhamos aberto uma pequena janela na porta traseira do camião, que nos permitia ver uma luz acesa dentro da galera, sinal de que o gerador – e filtração – trabalhavam sem problemas. Em boa verdade já tínhamos carburado essa solução ainda em França, mas, durante o dia, era impossível perscrutar se a luz estava acesa dentro do camião. À noite, pelo contrário, era facílimo e o frio nocturno trouxe também funcionamento estável e regular da nossa doce e tão estimada Geraldina.

Seriam exactamente quatro da manhã quando ignorámos o veículo da segurança que nos veio guiar até à zona técnica do Centro Comercial Xanadú, na zona sudoeste da capital espanhola e mesmo colado à maravilhosa A-5, que nos colocaria em Badajoz depois de percorrermos uns míseros quatrocentos quilómetros depois da entrega das raias.

Na última curva de noventa graus antes do camião se imobilizar, com todo o staff espanhol já na rua à nossa espera, o camião parou de forma súbita à nossa frente. A luz estava acesa dentro do compartimento de carga e, de janela aberta, até conseguíamos ouvir o gerador, por isso não deixámos que algo tão pouco digno de importância nos perturbasse. Foi quando a paragem passou de uns segundos para uns minutos, e vi o Armando e Filipe a desmontarem da cabine, que resolvemos sair pensando “Mas que diabo foi agora?!”

De lanterna na mão, o Filipe olhava para os cabos que uniam a galera ao tractor e percebeu rapidamente que um deles tinha acabado de se partir dada a intensidade da curva, que o obrigou a esticar mais do que estava preparado para fazer. Com escassos cinquenta metros a separarem-nos do portão por onde as raias iriam entrar, não conseguimos evitar uma gargalhada, porque os deuses do transporte de raias vivas estavam realmente furiosos connosco, vá-se lá entender porquê. Mas não havia tempo a perder e um isqueiro providencial começou logo a queimar a ponta de cabo, depois desta ter sido cortada, de forma a amaciá-la antes de ser colocada na ponteira metálica onde teria de entrar. O diabo do cabo, contudo, não era de borracha mas sim de uma maldita substância plástica bem mais rígida do que esperávamos, pelo que a ténue chama do isqueiro não estava, sequer, a aquecê-lo. Enquanto a equipa espanhola olhava para nós com aquela cara internacionalmente conhecida como “WTF??”, o Filipe entrou na cabine e, depois de remexer um bocado, saiu com um belo fogareiro Campingaz que, depois de aceso, debitou uma chama azul tão intensa que o plástico do cabo não teve outro remédio senão render-se mais depressa do que meia dúzia de sardinhas num fogareiro.

Cabo no sítio, estava ultrapassada a anomalia mecânica que impedia a caixa de velocidades de funcionar e o grande Iveco pôde avançar os cinquenta metros que o separavam do acesso à quarentena.

Cumprimentos e abraços depois, demos início ao processo de aclimação da água das raias, estas ainda nadando alegremente pelos quatro tanques, como se tivessem sido acabadas de carregar. Não escondemos o nosso choque quando os aquaristas espanhuelos começaram a chegar com mangueiras verdes de jardim, com um diâmetro inferior a dois centímetros…

“Não sei se conseguiremos ir almoçar a casa amanhã, rapazes…” comentei eu, depois de perguntar ao Pipo, em tom de voz um pouco mais esganiçado do que se deve usar com um cliente:

“Hombre, no tienes mangueras más grossas, carajo?!”

No. So ay estas.” Foi a resposta que ouvimos, por isso fomos despejando água dos tanques para a rua, enquanto as mangueiras espanholas debitavam uns quinze litros por hora para dentro deles. Estou a exagerar, naturalmente, mas não tanto quanto isso…

Entretanto as meninas do controlo de qualidade de água vinham subindo e verificando a água dos tanques, sendo que a temperatura e pH estavam praticamente idênticos, mas a ranhosa da salinidade tinha uns cinco ou seis pontos de diferença. Não me recordo se éramos nós ou os espanhóis que estavam demasiado salgados, mas uma diferença tão grande ditava uma aclimação lenta, pelo que fomo-nos mentalizando para acolher o lindo nascer do sol madrileno, quando uma voz proferiu do fundo do camião, na rua “João Correia!!”

Embora não conseguisse reconhecer a cara de imediato, a voz soou-me familiar. À medida que fui caminhando em direcção à porta, os dois neurónios que ainda tinha acordados lá resolveram trabalhar em conjunto e levar-me a proferir “Pablo Areitio!!”, antes de abraçar o meu parceiro de muitas aventuras hispânicas.

O Pablo, pensava eu reformado, mas entretanto contratado com consultor, era um dos vários responsáveis pelo nascimento da Flying Sharks, não só pela simpatia com que aplaudiu a ideia mas, acima de tudo, porque tinha requisitado os meus serviços ao Oceanário nas vésperas da abertura do impressionante L’Oceanogràfic em València. Depois de múltiplas capturas olhanenses e carregamento de camiões para os nuestros hermanos, seguiram-se ainda dois imponentes charters de Boeings 747 de Miami até València, organizados e carregados pelo vosso amigo caixa d’óculos. Essas operações, no final de 2002 e início de 2003, aliadas à crescente necessidade de maiores e mais intensos desafios, estiveram absolutamente na génese da minha passagem de colaborador full-time a part-time no Oceanário, ao mesmo tempo que me entregava ao sonho Flying Sharks com o Zé Graça, no distante ano de 2006.

Depois de pequenos dedos de conversa e risos nervosos sobre os últimos seis dias e o sofrimento atroz que experimentámos nas mãos turcas, lá começámos finalmente a carregar raias de um dos nossos tanques para dentro do enorme tanque de quarentena. À medida que as águas se iam equilibrando muito – mesmo muito – lentamente, o processo ia decorrendo com a boa disposição que se conseguia arranjar depois de um transporte de seis dias.

O sol já aquecia a pele quando, pelas oito da manhã, a última raia saiu do camião e entrou na quarentena. Eram nove da manhã em Istambul – uma hora mais tarde – pelo que o transporte tinha acabado de completar precisamente seis dias, ou cento e quarenta e quatro horas. Enquanto arrumávamos o equipamento e esvaziávamos o resto dos tanques, minutos antes de tomar uma bela ducha nos balneários do aquário, fui acometido de um estado de euforia, que me levou a enviar à Nina uma das mensagens com mais pontos de exclamação que jamais lhe enviei.

O Pablo convidou-nos então para o um desayuno no food court do centro comercial, que começava a acordar. “Café con leche y tostada con mantequilla y marmelada, por favor!” pedi ao balcão, antes de nos sentarmos todos com a equipa espanhola e nos rirmos de aventuras variadas colecionadas ao longo dos anos. Para além das noites de guitarrada e batuque em bares de Marathon Key, nas vésperas dos dois transportes para València, ainda recordámos o dia em que voei até ao ZooAquarium de Madrid, com o Mark, a pedido do Pablo, para insuflarmos ar dentro de um tubarão-touro que tinha dificuldade em manter a sua posição na coluna de água, mas os leitores mais atentos recordarão essa aventura da publicação anterior.

Depois de calorosas despedidas, sentei-me ao volante do Skoda e apontei a Lisboa, mas fui subitamente derrotado por um pancadão de sono que não passou despercebido ao Luís, ao meu lado, que me obrigou a encostar na primeira área de serviço e dar-lhe as chaves. Não me recordo dos quatrocentos quilómetros até Badajoz, nem dos duzentos e trinta até Lisboa, mas sei que chegámos à garagem dos meus pais sãos e salvos, depois de deixarmos o Luís à porta de casa. Só restava passar as coisas do Zé para o carro dele, que tinha ficado na garagem do Correia sénior, e passar a chave do Skoda à minha antiga aluna Daniela Jacinto e o seu colega Marcelo Faustino – que estavam prontamente à minha espera -, para que pudessem levá-lo de volta a Alexandroupoli.

Não escondo que, quando anunciei no Facebook que precisava de um – ou dois – condutor(es) para devolver o carro, inicialmente a Istambul, fiquei algo amedrontado quando a candidata principal era uma jovem, minha antiga aluna de Animação Turística, que não devia ter mais de vinte e muito poucos anos. Conhecendo bem a mentalidade de borga desta rapaziada, temi uma primeira página negra de Correio da Manhã com as parangonas “Professor envia estudante para a sua morte na estrada!” Mas a Daniela riu-se dos meus anseios e assegurou-me que, como condutora de ambulâncias, se sentia muito confortável ao volante, tal como o seu amigo Marcelo. Tranquilo com esta informação, lá fechámos negócio e, para além de regresso confortável por avião – e mais umas massarocas extra – ainda incluí duas noites em Atenas, para passearem à vontade. Meti-lhes o meu cartão de crédito na mão, rezando para que a Turquia e os últimos seis dias me tivessem deixado algum saldo, e despedi-me primeiro deles – desejando-lhes uma excelente e segura viagem – e depois do Zé, que me deixou à porta de casa, antes de seguir para Peniche. Tirei uma selfie, que enviei à Nina, mesmo antes de abrir a porta do prédio. Não a via há nove dias e tinha tanto – mas tanto – para lhe contar.

No dia seguinte disparei um email para o Pablo e Pipo a perguntar como estavam as raias, porque uma das quinze tinha o ventre um pouco esfolado com alguns resíduos que só descobrimos no fundo de um dos tanques já a meio da viagem. O Pablo respondeu que estavam todas óptimas, já a comerem ferozmente – pudera, depois de seis dias de viagem e uns quatro de jejum antes desta – e, surpresa inesperada, havia duas pequenitas que nadavam no tanque…

Ou seja, saímos de Istambul com quinze raias, mas entregámos dezassete, porque duas só saíram da barriga da mamã já em Madrid. Dum ponto de vista biológico e operacional, o resultado do transporte foi tremendo, com tantos obstáculos ultrapassados que, a dado momento, perdi-lhes a conta. Na frente financeira, contudo, um verdadeiro desastre, porque a factura da TPO foi francamente superior ao que tínhamos estimado inicialmente – fruto dos muitos dias extra de trabalho -, bem como a multa do abominável dozvola, noites de hotel e sei lá mais quantos custos extra que caíram na folha de Excel desta operação. O Pablo, contudo, foi um grande cavalheiro e acolheu o meu embaraçoso pedido – único em toda a história da Flying Sharks – de um pagamento adicional para cobrir as despesas extraordinárias, dada a sua abundância. No final de contas as contas feitas, ficámos no break even, ou seja, não perdemos dinheiro nenhum, mas também não ganhámos um tusto.

Contudo, chamem-me totó, se quiserem, mas considero que esta foi a hora mais brilhante da Flying Sharks porque, não querendo armar-me em esperto, conheço bem o sector e sei que mais ninguém aguentava a dose épica de porrada que nós aguentámos, nem mais ninguém teria entregue os bichos em tão excelentes condições. Dir-se-ia que a Turquia puxa por nós até ao limite: em 2010 foram seis meses de trabalho intenso para atestar dois aviões com 3100 peixes, transportados em quarenta e quatro tanques, que chegaram ao aeroporto em oito camiões. Oito anos depois, saímos de lá com quinze raias e esperávamos três dias de viagem; demorámos o dobro, mas entregámos dezassete. Se isto não demonstra a pintarola com que fazemos o nosso trabalho e resistimos à adversidade, não sei que poderá demonstrá-lo.

De qualquer forma, para além de sentir o peito inchado – embora a carteira vazia – com a experiência épica que tinha constituído a nossa segunda saga turca, admito que a minha prioridade, no regresso, era outra, já que o não crescimento do nosso segundo embrião ditava que avançássemos com uma terceira transferência, desta vez com o mais fraquito de todos. Mas, se uma nação de turcos não nos conseguiu derrubar na façanha que tínhamos acabado de concretizar, seguramente que não seria a falta de estofo do nosso terceiro embrião luso-sérvio que me impediria de avançar com o lindíssimo projecto de constituir uma lindíssima família, com a minha lindíssima Nina.

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