
Já chega de Chega
Na sequência dos resultados eleitorais de dia 30 de janeiro, republico aqui umas linhas que, em janeiro de 2021, enviei para múltiplos jornais que já tiveram a amabilidade de publicar páginas minhas. Na altura ninguém as publicou, a não ser os amigos do duaslinhas.pt, nestes três artigos: parte 1, parte 2 e parte 3.
Há muitos anos tinha um negócio que me levava a idas semanais aos CTT, de onde expedia dezenas de “pacotinhos de felicidade” para jovens casais apaixonados, que decidiam apimentar a sua vida íntima com artigos disponibilizados pelo meu website. Entretanto a Amazon, e-Bay e outros gigantes, mandaram-me esse negócio ao fundo, mas o mundo não acabou, até porque estou focadíssimo em novas fontes de entusiasmo – e rendimento.
Mais ou menos por volta do dia 21-22 de cada mês, a estação de correios das Olaias – entretanto encerrada em virtude das reestruturações que a empresa tem sofrido depois de ser privatizada – acolhia um fluxo de clientes invulgarmente elevado, a maioria dos quais a procederem ao levantamento dos seus vales de rendimento mínimo, desemprego, reforma, inserção social e afins. Sentado num canto, com a minha cadela Rotweiller – cuja presença era autorizada pelo chefe da estação, que conhecia a boa disposição e natureza da bicharoca – eu esperava pacientemente pela minha vez. Na altura ainda não era entretido pelo maravilhoso mundo das redes sociais, como agora, e afagava o pêlo negro da Anouk, que se deitava tranquilamente no chão e aguardava pela hora de ser atendida pelo Jorge. Este amigo colocava-lhe então rolos de fita de papel de impressora (usados) na boca e todos nos divertíamos a pôr a conversa em dia enquanto as minhas encomendas eram processadas ao som do delírio da Anouk a roer o seu rolinho de cartão.
Nos tais dias 21-22 ocasionalmente entravam grupos grandes, tradicionalmente vestidos de preto, a falarem consideravelmente mais alto do que o volume médio dos restantes ocupantes da estação e, genericamente, a armarem confusões frequentes com os ditos ocupantes ou funcionári@s. O cenário incluía regularmente uma septa-ou-octogenária que mal se conseguia mexer e que recebia alguns euros ao balcão, depois de assinar um formulário com a sua impressão digital. O líder do grupo recolhia então a dita verba e todos regressavam ao bólide de grande cilindrada – normalmente alemão – estacionado no local reservado à carrinha dos CTT.
Se me perguntassem quão agradado ficava com este cenário, com que me deparei mensalmente durante duas décadas, responder-vos-ia que não, não ficava nada agradado. Aliás, vinha para casa a sibilar impropérios, que provavelmente roçariam alguns dos disparates que ouvimos saírem da boca de André Ventura. Mas as minhas semelhanças com o líder do Chega terminam precisamente nesse ponto.
O problema de André Ventura, que muito beneficiaria dum tom mais avermelhado nos lábios, é que não entende que não são só os cidadãos de etnia cigana que vão buscar verbas aos CTT sem terem contribuído para as ditas; há por aí muito empresário engomadinho, ou jovem de tez pálida que atendeu chamadas num call-center durante o período mínimo legalmente requerido para poder receber subsídio de desemprego, que também o fazem. Não são só os ciganos que violam as regras do isolamento social, porque todos vimos as filas nas lojas dos centros comerciais nas vésperas do Natal, evocativas de Alexanderplatz durante o OktoberFest. E agora estamos a pagar essa factura.
Ora puxemos pela cabeça, exercício que é sempre melindroso, mas malogradamente necessário. Quando um empreiteiro prefere meter imigrantes cabo-verdianos a alombarem com tijolos porque trabalham mais barato e, eventualmente, aturam condições de trabalho desumanas porque estão ilegais, a culpa desses empregos estarem nas mãos dos ditos cabo-verdianos é deles, ou do empreiteiro? Quando o cinema Londres fechou e se transformou numa loja de artigos baratos, a culpa é dos chineses que a abriram, ou dos que deixaram de lá ir ver o Tom Cruise, para irem antes aos centros comerciais e atestarem a seguir um carrinho de compras com tralha de que não precisam? Quando a Segurança Social se vê à rasca para pagar rendimentos de inserção social, a culpa é do número vestigial de brasileiros e peruanos que eventualmente beneficiam deste rendimento, ou dos donos de empresas que fazem o possível – e impossível – para cortar nas contribuições mensais para a SS, incluindo mover as sedes para paraísos fiscais, dentro ou fora da U.E.? Quando as contas de Mário Centeno nos obrigaram a apertar o cito com impostos mais pesados, a culpa terá sido das lojas dos nepaleses e indianos, que trabalham sem descanso aos sábados, domingos e feriados, ou será também dos bailouts aos bancos, que já somam tantos milhares de milhões, que lhes perdi a conta?
O problema de André Ventura é que apregoa os exemplos anteriores sem os contextualizar e arrasta consigo uma vara de néscios demasiado simples para entenderem que a esmagadora maioria dos problemas que atribuem a uma fracção minoritária da população, são efectivamente causados por um fosso de desigualdade social que se alarga cada vez mais.
Não se combate esse fosso apontando dedos a meia dúzia de desgraçados que, na maioria dos casos, só querem meter comida na boca dos filhos. Combate-se esse fosso arregaçando as mangas e tratando bem as pessoas.
O André Ventura devia pensar mais antes de falar, particularmente quando se refere a maquilhagem de senhoras, entre outros tópicos interessantes. Se o fizesse, já teria chegado à conclusão a que as (poucas) pessoas lúcidas da Alemanha pré-nazi chegaram: os problemas económicos do país não foram causados pelos judeus, mas sim por uma gulodice que deu em desastre e que teve início na Bolsa de Valores de Nova Iorque, repercutindo-se pelo mundo inteiro. Porque isso dos bancos afiarem as unhas perante oportunidades de lucros aparentemente fáceis e se meterem em negócios que não correm tão bem quanto esperavam não é uma habilidade só dos tempos de desregulação dos Bush, Dick Cheney e Trump. Isto é uma artimanha que que já enche os bolsos do 1% e nos morde no proverbial rabinho – dos 99% – desde há muito tempo. A famosa Grande Depressão pavimentou o caminho para um pintorzeco de bigode ridículo inflamar hordas de mentes simples, que beberam cada palavra que lhe caía dos beiços esotéricos, culpando a minoria judaica pelo infortúnio que os assaltava.
Nestes tempos em que um bicho malvado saiu de Wuhan e tomou o mundo de assalto, os Andrés Venturas desta vida têm um palco fácil, porque todos estamos sedentos de um bode “respiratório” (como dizia “o outro”…) a quem apontar o dedo e ninguém consegue encontrar nem o morcego, nem o pangolim cujo deboche deu origem (alegadamente) a esta bela salada russa em que nos encontramos. Mas apontemos esse dedo ao espelho, porque este vírus não é produto de uma elite facínora chinesa que quer dominar o mundo – pelo menos assim o espero. Este vírus é produto de todas as vezes em que fomos de carro para um destino que ficava a vinte minutos de caminhada. Este vírus é produto daqueles sacos de plástico que envolvem as maçãs que colocámos no carrinho das compras e, quando chegámos a casa, enfiámos no caixote do lixo, ou até no saco da reciclagem amarelo. Este vírus é produto daqueles cinco cêntimos que poupámos em cada produto atestado de óleo de palma, porque comprar a versão “biológica” e que não mata orangotangos é demasiado caro para o nosso orçamento familiar. Orçamento esse que encaixa sempre o smartphone de mil euros mais recente, pois claro.
A culpa do vírus e dos males que afligem a sociedade, meu caro André Ventura, não é dos ciganos, nem dos angolanos, nem dos brasileiros, nem sequer dos ucranianos, dos russos, ou dos chineses. A culpa do vírus, e de tudo o resto que anda mal no Reino da Dinamarca, é de todos nós, que andamos a brincar com esta m#rda, como se a natureza fosse um saco de pancada que tem de aguentar os caprichos de uma espécie que decidiu tirar mais do que deve de um planeta minúsculo, que já se percorre de um lado ao outro em menos de um dia. A culpa do vírus é dos engravatados em quem votamos – incluindo o meu caro – que se têm preocupado mais com reeleições – e encher os bolsos – do que em resolver problemas efectivos.
Deixemos de apontar o dedo a quem não tem culpa e a assumir que todos contribuímos para isto. Deixemos de dar ouvidos a quem se tenta aproveitar da situação para ganhar palco. Já chega de Chega.
6 de janeiro de 2021
Este artigo terminaria na linha anterior, se não fossem os acontecimentos que ocorreram no Capitólio da capital norte-americana no dia 6, durante o qual uma multidão – incitada por um dos muitos Andrés Venturas ululantes que pululam por esse mundo – invadiu um espaço, considerado inexpugnável, pela força das armas, gritos, murros e pontapés, vandalizando depois esse mesmo espaço, em nome duma eleição fraudulenta que só ocorreu nas suas mentes. Pelo caminho deixaram cinco mortos, dezenas de feridos (a maioria dos quais agentes da lei) e meia-dúzia de detenções, num contraste grotesco com os protestos Black Lives Matter, no mesmo local, uns meses antes.
Seguiram-se os intermináveis comentários nos media e redes sociais (incluindo este que lêem agora), mas há um tipo de comentário que me merece particular atenção, para não dizer “vómito”, que é a frase “Em Democracia, todos têm direito à sua opinião, incluindo o André Ventura.” Pois bem, esse raciocínio está errado, pelo facto de ignorar a carga de ódio e violência que o discurso de André Ventura – e similares – encerra.
Diz-se que “a liberdade de um acaba onde a de outro começa” e esse princípio é violado vezes sem conta quando um palerma se empoleira numa caixa de sabão e apregoa que um segmento da população devia ser mandado para casa e é culpado de todos os males do mundo, incitando os seus seguidores acéfalos a mandarem essas minorias de volta para a sua terra. Este discurso não pode ser admitido como “igual aos outros” e, portanto, beneficiando do direito de antena que os outros merecem. Este discurso merece prisão, não merece tolerância, porque viola os mais básicos direitos da Humanidade, e é isso que os defensores da “democracia” não entendem.
Liberdade de expressão, sim; desde que essa não incite à violência (física, psicológica, financeira, ou de qualquer outro género), como até um bonobo com Alzheimer entende…
Conta-se que, se colocarmos uma rã numa panela de água a ferver, ela salta para fora. Mas, se a colocarmos numa panela de água fria e ligarmos o lume, ela ficará lá dentro até morrer, porque se foi habituando lentamente ao aumento da temperatura. Não faço ideia se este cenário trágico é real e não tenciono ensaiá-lo. Mas o que os acontecimentos no Capitólio nos mostraram é que estamos todos dentro de uma grande panela e a pele de alguns já se começa a descolar dos ossos, tal é a temperatura a que o caldo já chegou em algumas partes do mundo, nomeadamente do outro lado do Atlântico. Vimos isso em Washington no dia 6, mas também vemos isso diariamente nos debates presidenciais televisivos, durante os quais o Ventura se esforça por angariar votos apelando ao pior que há nos seres humanos, dando lume a sentimentos que enviaram, por exemplo, milhões de judeus para salas de gás há quase um século. Mas o pior de tudo é a inacreditável desculpabilização desse discurso em nome da “liberdade de expressão” e “democracia”. Não, não, não e mil vezes não.
Incitar a população a exercer violência contra grupos dessa mesma população não é “liberdade de expressão”, é crime.
Esse discurso não pode ser permitido e até o Mark Zuckerberg finalmente abriu a pestana e cortou o pio ao Donaldo até ao dia em que abandonar a Casa Branca. Permitir a perpetuação do ódio, em nome da “liberdade de expressão” é ser cúmplice das atrocidades que se cometeram na Alemanha nazi, na Arménia, no Sudão, no Ruanda, no Zimbabwe, na Coreia do Norte, e ficávamos aqui o resto do dia a elencar palcos de violência inenarrável, que começou sempre com discursos que tinham de ser ouvidos em nome da “liberdade de expressão”.
Não, não, não e um milhão de vezes não.
Se não quisermos ver os venturitas a assaltarem São Bento com barretes de campinos na cabeça e as caras pintadas de verde e vermelho (e o nariz de amarelo), enquanto tiram selfies com os pés em cima da secretária do António Costa, quiçá de lábios bem encarnados, é melhor que comecemos a cortar o pio dos venturas desta vida.
Já chega de Chega.
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