O Flyer no Tanque Central
Algures no início de 2003, passeava na Avenida de Roma com a minha esposa e a maravilhosa Rottweiler ‘Anouk’ ao fim da tarde, quando vi algo que mudou tudo. A Anouk, já agora, foi comprada ao casal Domingos e Celeste, clientes de lingerie, brinquedos marotos e donos de um negócio especializado em… cães. No tal passeio, dei de caras com uma caixa de electricidade que exibia um cartaz a preto e branco que me cativou de imediato. Debaixo de um espartilho de cetim preto, um rabinho sedutor e esbeltos braços envoltos em luvas de latex, uma silhueta a preto e branco, de costas, encabeçava as letras vermelhas ‘The Gathering III’, com o sub-título ‘Bondage | BDSM | Fetiches’. Fiquei cativado de imediato, mais ainda quando vi a data da festa que o cartaz divulgava: 9 de Junho de 2003, o dia do meu aniversário. Entendi esta coincidência como um apelo cósmico e tomei nota do website no rodapé do cartaz, a quem encaminhei uma mensagem dois segundos depois de chegar a casa.
Atendeu-me uma menina que, por sua vez, me disse que seria contactado pelo organizador da festa, também chamado João. Dias depois estávamos sentados na minha mesa da sala, num tom inicialmente muito sério, mas rapidamente nos começámos a tratar por ‘tu’ e ficámos grandes amigos, amizade essa que já enfrentou vários desafios, mas perdura desde então. O João explicou-me que esta era já a terceira Gathering Party, um evento dedicado à tropa fetichista do país e arredores. Eu abracei imediatamente a ideia de patrocinar o evento na forma de mega-descontos aos fetichistas, aos quais bastaria dizerem “Eu quero comprar isto para levar à Gathering!” e beneficiavam automaticamente de preço de ‘revendedor’, apesar de serem ‘público final’. Era outro excelente exemplo de estratégia ‘win win’ e despedi-me do João certo de que esse momento marcava o início de uma bela amizade, como se estivéssemos no final do filme ‘Casablanca’.
A festa foi um sucesso e poucas semanas antes de uma nova edição no ano seguinte, o João indicou que gostaria de promover essa festa ‘à séria’, o que incluía a distribuição de flyers coloridos nos bares frequentados preferencialmente pela maltosa fetichista da Grande Lisboa. Quando me disse que ia à ‘Planet’ imprimi-los, referi timidamente que o Oceanário tinha acabado de adquirir uma extraordinária impressora laser… a cores. Consciente das implicações morais e éticas do compromisso que tinha acabado de assumir, aguardei calmamente pelos momentos em que os meus colegas se ausentavam do escritório para imprimir um flyer, depois dois, três, e continuei até atingir uma dezena, momento em que parei, não só para não ser catado, mas também porque o peso na consciência começou a ser superior ao da excitação pela marotice do acto.
Nessa altura os meus colegas supervisores do departamento de biologia, do qual eu era um dos dois curadores, tinham-se convertido à utilização do ‘PDA’, acrónimo de personal digital assistant e predecessor do smart-phone e/ou tablet. Eu, pelo contrário, permaneci – até 2017 – teimosa e orgulhosamente agarrado à utilização de uma agenda em formato quase-A4, daquelas que mostram uma semana inteira quando abertas em cima da mesa, e o motivo por que efectuei este desvio na narrativa tornar-se-á claro dentro de segundos.
Calhou, na tarde em que já tinha juntado uma dezena de flyers dentro da dita agenda, ser chamado ao edifício administrativo para uma reunião. Normalmente caminho em passo muito acelerado, o que já me valeu algum gozo por parte de conhecidos e amigos, e essa tarde não foi excepção. No meu trote de quem já vai atrasado, encaminhava-me para a reunião, caminhando na galeria que rodeia o topo do Tanque Central do Oceanário, onde estão localizados os escritórios do departamento de biologia. Tive então a infeliz ideia de abrir a agenda, para verificar os tópicos que iriam ser discutidos, e o meu passo – repito – acelerado provocou o esvoaçamento dos flyers para o chão e… água.
O coração explodiu-me de aflição quando vi alguns flyers que continham uma beldade desnudada, em pé, que puxava uma outra beldade (igualmente nua à excepção de duas botas de vinil vermelhas que lhe chegavam a meio das coxas esbeltas, embora estivesse de gatas) por uma trela que tinha presa ao pescoço. Admito que esta temática fetichista sempre me impeliu o sangue para o órgão reprodutor mas, naquele momento, ao ver meia dúzia de flyers destes flutuarem na superfície do Tanque Central, o sangue fluiu definitivamente na direcção oposta, encolhendo-me todos os órgãos passíveis de serem encolhidos.
Entrei rapidamente em acção e comecei por recolher os flyers que tinham caído no chão para, breves segundos depois, recolher os que tinham caído na água com o auxílio da rede mais próxima, que era felizmente dotada de um cabo suficientemente longo. O problema estava quase sanado, se não fosse o facto de ter apenas nove flyers na minha posse, o que significava que um décimo não estava localizado.
Percorri freneticamente as páginas da agenda, para garantir que o maldito décimo flyer não estava perdido no seu interior, mas não restavam dúvidas: tinha meia dezena de flyers secos na agenda, mais quatro ensopados e havia um desaparecido, que era o que me amedrontava mais. Lembrei-me então de caminhar até ao centro do Tanque Central usando as passadeiras técnicas e, debruçando-me até conseguir ver o que se passava debaixo da galeria que rodeia o Tanque, assisti – com generosa dose de horror – ao flyer desaparecido encaminhar-se para… um dos quatro grandes painéis de acrílico do Tanque Central do Oceanário de Lisboa… Pior ainda, vislumbrei pequenos panamás amarelo-canário, aos pares, no topo de bibes axadrezados… O cenário, portanto, é que um flyer com duas senhoras nuas, uma em pé que puxava outra de gatinhas pela trela, estava a ir em direcção a um painel de acrílico, que separava os cinco milhões de litros de água – e mil criaturas marinhas extraordinárias – de uma turma de infantário.
O problema (adicional) residia no facto de que o cabo da rede que manobrava era curto demais para chegar ao maldito flyer. Contudo, conseguia chegar suficientemente perto para gerar uma corrente que me fosse favorável. E assim foi que comecei a arrastar a rede na minha direcção, desesperada e freneticamente, até que a água começou lentamente a mover-se num sentido que me era vantajoso e o flyer, indolente e molengão, eventualmente lá ficou ao alcance das minhas investidas com a rede. Recuperei o fôlego enquanto as botas da menina submissa pingavam tinta vermelha no chão da galeria no topo do Tanque Central. Nesse mesmo dia, enquanto conduzia para casa, achei que as minhas várias actividades estavam a sobrepor-se de forma declaradamente perigosa, e esses pensamentos não podiam ter vindo em melhor altura, porque não tardou muito até chegar um convite que me levou a repensar o futuro que achava que me estava predestinado. Antes, porém, havia que limpar umas casas de banho e mudar uns peixes daqui p’r’ali…
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