Um fim de semana agitado

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Quinta feira, 14 de março.

Ainda faltavam 15 minutos para a hora acordada quando a minha fabulosa equipa chegou à porta do meu prédio, carregadinhos de material até à ponta dos cabelos. Ao contrário de mim, chegam sempre a horas aos encontros marcados.

Acabavam de chegar de Peniche cheios de sacos, elásticos, químicos para controlo da água, cintas para prender material, bombas de circulação e arejamento, pilhas, sondas para monitorização do pH, oxigénio e temperatura, e mais um montão de equipamentos indispensáveis para o transporte de peixes vivos.

Já houve uma altura em que eu passaria horas a verificar se estava tudo certo e não tinha havido nenhum esquecimento, mas esses tempos estão muito distantes e enfiei-me dentro do carro, depois de encaixarmos o meu malão gigantesco, sem sequer perguntar se faltava alguma coisa.

A pobre Inês era a mais pequenina do grupo e, no centro do banco de trás, parecia afogada em malas e sacos! Ao lado dela estavam o Miguel e Nuno e, ao volante, o David. Todos foram meus alunos e são umas valentes máquinas, motivo pelo qual foram todos caçados pelo head-hunter e fundador da Flying Sharks, o caixa d’óculos que vos escreve estas linhas.

Aliás, minto.

Apanhar o Nuno e David é mérito deste vosso criado, mas a Inês e Miguel já foram uma selecção do David, que gere de forma brilhante o nosso estaminé em Peniche.

Depois de um Uber XL com uma condutora muito nervosa e que quase tinha braços e pernas a saírem pelas janelas, seguiu-se a divertidíssima dança das balanças no check-in de bagagens da TAP, enquanto passávamos material de umas malas para as outras, garantindo que nenhuma ultrapassava os 23 quilos.

Seguiu-se a compra de 8 belas garrafas de vinho do Porto, porque tínhamos muita rapaziada simpática a quem agradecer na Dinamarca, Alemanha e Polónia, o nosso destino para os próximos dias.

O voo foi tranquilo e até, inesperadamente, com direito a filme, por isso lá despachei o ‘Interstellar’ pela 27ª vez, vertendo a tradicional cascata salgada emocionada quando o pai deixa a filha para ir salvar a humanidade. Posso ver essa cena mil vezes, mas os sacanas do Hans Zimmer, Christopher Nolan e Matthew McConaughey põem-me sempre o queixo a tremer… malvados.

Um atraso de 90 minutos na partida, devido a questões de tráfego aéreo, ainda me fez despachar um email de aviso à Oscar rent-a-car, em Copenhaga, já que um funcionário se tinha oferecido, simpaticamente, para esperar por nós e dar-nos as chaves das duas carrinhas às 7 da tarde, apesar de fecharem às 4.

Restava saber se, com este atraso, ainda lá estaria à nossa espera…

Novo Uber XL, agora mais espaçoso, em Copenhaga e seriam 8 e picos quando já estávamos ao volante das duas máquinas, com 400 km pela frente até Grenaa, cidade do mítico Kattegatcentret, onde tínhamos 10 Raja clavata lá nascidas à nossa espera. Era perto da meia-noite quando chegámos ao hotel Marina, já com um belo Donaldo no bucho, e despedimo-nos até às 8 da matina seguintes, hora a que daríamos início formal à nossa aventura.

Sexta-feira, 15 de março.

Eram 9 da manhã quando estávamos a chegar ao Kattegatcentret e avisei o meu amigo Rune que os 5 tugas estavam a estacionar. “Já??” respondeu ele, o que me fez de imediato lembrar que me tinha esquecido de o avisar que os nossos planos tinham mudado e, afinal, em vez de lá chegarmos depois de almoço, íamos aparecer de manhã, pela f’esquinha. E a trabalheira que me deu mudar esses planos, porque os malvados da Oscar não queriam esperar por nós na véspera!… Ainda foram uns telefonemas e emails nervosos no dia anterior, enquanto dava aulas, mas a coisa lá se acertou.

Superado o choque inicial o Rune também nos assegurou que estaria por nossa conta pelas 10 da manhã e, enquanto o David, Miguel e Inês preparavam o tanque de transporte que eu tinha enviado para Grenaa na semana anterior, eu e o Nuno fomos à caça de uma bateria de 12 volts bem potente, que não é coisa fácil de transportar na mala do avião.

Não demorou muito até o Nuno apontar para uma oficina, onde larguei 200 euros por uma bateria Varta de 110 amperes, que nos deveria alimentar o filtro das raias até ao final do dia seguinte. Seria meio-dia e picos quando tínhamos as bichas carregadas na carrinha que eu conduzia com o David e Nuno, mas acabámos por só levar 7, em vez das 10 inicialmente previstas, porque não quisemos ter mais olhos do que barriga. Melhor entregar 7 animais em excelentes condições do que 10 a precisarem de reanimação cardiopulmonar, não é verdade?

Às 3 da tarde, empanturrados com Whoppers, chegámos ao North Sea Museum em Hirtshals, não muito longe da Noruega, do outro lado do Báltico. O nosso amigo Martin recebeu-nos de braços abertos, como sempre, e, depois de ligarmos a preciosa bateria a um carregador, fomos marinar 3 horitas no hotel Skaga, do outro lado da rua. Teríamos 36 horas de loucura non-stop pela frente e o bom-senso ditava que essa tarde incluísse uma sesta. A juventude demonstrou entusiasmo em visitar o aquário, mas aqui o cinquentão, que conhece muito bem o espaço onde entregámos dois magníficos peixes-lua que cresceram até aos 800 kg (!), preferiu tomar um duche, vestir o pijama e enfiar-se na cama, marcando o despertador para dali a duas horas.

Pois claro que os nervos, emails e telefone (mesmo no silêncio) não permitiram muito mais do que uma horita de descanso efectivo, pelo que às 6 da tarde já estava no lobby do hotel a despachar uma cervejola com o Martin e um colega que nos iria ajudar.

Às 7 e meia em ponto, rigorosamente como planeado, estávamos todos no terceiro piso do Skaga a saborear um magnífico jantar, que se estendeu um pouco mais do que esperávamos, pelo que a sobremesa teve ser substituída por cafés rápidos e às 9 e meia já estava a tropa toda a espalhar as 50 caixas onde iríamos embalar bacalhaus capturados por pescadores amigos do Martin.

Vinte animais iriam connosco, por estrada, até Gdynia, na Polónia, enquanto 30 voariam de Copenhaga até Lisboa, de onde seriam transportados para Ílhavo pelo Zé e Reis, da equipa de Peniche.

O plano era escapar de Hirtshals pelas 2 da manhã e faltavam 15 minutos para essa hora quando nos sentámos, pela primeira vez, para saborear um último café antes de dar início à nossa jornada de 480 km de volta ao aeroporto de Copenhaga. As 4 horas anteriores são difíceis de descrever, mas imaginem um biólogo marinho de 1 metro e 88 dentro de um poço bem fundo, a escolher cuidadosamente os bacalhaus mais bonitos, em água com 6 graus centígrados, enquanto 3 jovens biólogos (e uma bióloga) colocavam gentilmente esses animais dentro de um saco com 15 litros de água artilhada com químicos que visavam manter o pH alto e amónia baixa, e mais 10 litros de água do tanque onde os animais nadavam. Adicionemos a esta receita 4 garrafas de água congelada, uma dose generosa de oxigénio puro, umas belas voltas e 3 elásticos fortes no topo dos sacos de plástico triplos, com 80 por 100 centímetros, e cada embrulho era fechado com fita-cola Flying Sharks, repleta de avisos ‘fragile’, porque a natureza delicada da carga assim o ditava.

Às 2 da manhã em ponto rumávamos à área técnica do aeroporto de Copenhaga, no bairro Kastrup, onde o transitário Jesper esperava por nós às 7 e meia. Surpreendemos o malvado chegando 1 minuto adiantados e, depois de recebermos a documentação e etiquetas, acelerámos até à WFS, o agente de ground handling que iria receber as 30 caixas e as colocaria a bordo do voo da TAP 753 para Lisboa, ao meio-dia e meia.

Essa operação estava cronometrada ao segundo, porque tínhamos um ferry para apanhar em Gedser às 11 da manhã. Esta cidade, na ponta sul da Dinamarca, ficava a 150 km de distância, pelo que queríamos ter o terminal de carga do aeroporto pelas costas não mais tarde do que as 9. O facto de ser Sábado ajudou-nos, porque o aeroporto estava às moscas e ainda não eram 8 e meia quando já tínhamos as 30 caixas descarregadas no cais, devidamente etiquetadas e fotografadas porque, como todos sabemos, uma operação que não está no Facebook é como se não tivesse acontecido.

Eram 10 e meia quando uma pequena distração nos fez falhar os pórticos de acesso ao porto de Gedser, mas lá emendámos a mão e pagámos os 163 euros para cada carrinha, e tripulantes, havendo ainda tempo para fechar os olhos uns minutos antes de embarcarmos no ferry ‘Copenhagen’.

Convenhamos que o catrapázio gigante com os horários dos ferries dizia “11:15 Copenhagen | 13:15 Berlin”, o que causou alguma confusão quando lá chegámos. Levou algum tempo até entendermos que esses eram os nomes dos navios e não dos seus destinos. Todos gracejámos com a lógica desse processo de atribuição de nome aos navios e aos placards de informação. Imagine-se a estação Oriente a informar os passageiros que o comboio “Lisboa” (com destino ao Porto) iria partir às tantas horas e o comboio “Porto” partiria para Santarém. Nenhuma confusão viria dessa estratégia, certamente.

Uma vez instalados no ferry híbrido movido meio a gasóleo e meio a vento, aterrámos todos rapidamente na terra dos sonhos, uma vez que ninguém tinha pregado olho na noite anterior. Acordámos a meia hora da chegada a Rostock, pelo que enfardámos à pressa um almocito no buffet ‘all you can eat’ a bordo.

Seguiu-se uma inspecção policial à saída do ferry que, como seria de esperar, correu bem. Afinal de contas, “quem não deve, não teme” e tínhamos um extenso dossier de documentação a suportar as nossas credenciais e todos os animais que transportávamos. Não escondo a irritação que sinto quando comunico isto às autoridades e me respondem “Não preciso de ver isso, só queremos a vossa identificação e cartas de condução”. Chatos.

Eram 3 da tarde quando chegámos ao Ozeaneum, em Stralsund, que ficava a apenas 100 km de Rostock, pelo que o ferry tinha sido desenhado pela Força para facilitar a nossa operação. A nossa amiga e cliente Nicole forneceu-nos um carregador, que ajudou a trazer a bateria Varta de volta à vida, enquanto atestávamos a carrinha da Inês e Miguel com um peixe-porco, Balistes capriscus, dois cações Mustelus asterias, duas pata-roxas, Scyliorhinus stellaris, e 30 anémonas, Anemonia viridis. Tudo bicheza nascida e criada no Ozeaneum, excepto o peixe-porco, que tinha sido levado por mim no distante 2008, logo no início da Flying Sharks.

Eram 4 da tarde, exactamente a hora pretendida, quando apontámos os dois Wazes para o Aquário de Gdynia, onde o nosso amigo e cliente Marcin esperava por nós a 560 km de distância. De bucho cheio de café e bolinhos oferecidos pela Nicole, acelerámos pela autobahn alemã, onde ainda fomos abordados pela Polizei germânica uma segunda vez, a poucos quilómetros da fronteira polaca.

 “Raios!…” pensei eu, consciente de que o nosso tanque com 7 raias e 20 caixas com bacalhaus deveriam colocar-nos acima dos 3500 quilos regulamentares… E logo desta vez em que até duplicámos o número de carrinhas precisamente para não excedermos (muito) os limites!

Mas fomos, mais uma vez, surpreendidos pela simpatia das forças da lei que, como habitualmente, não quiseram olhar para o dossier de certificados sanitários e documentos de transporte e desejaram-nos boa viagem enquanto o diabo esfrega um olho.

O sol já se tinha posto quando atestámos as duas máquinas em solo polaco, aproveitando para comprar uns cachorros-quentes e apreciar a (falta de) simpatia local. Não querendo ser deselegante, não passou despercebido a ninguém o semblante carregado dos funcionários – e funcionárias – da primeira área de serviço polaca onde entrámos e pagámos com o Revolut, para fugir às taxas cobradas pelos cartões que nos enchouriçam com mais 3% sempre que pagamos em moedas estrangeiras.

Com várias centenas de quilómetros pela frente, os buracos das estradas polacas não deixaram ninguém dormir, agradecendo eu à Providência o facto de ter gastado a bateria do meu portátil a ver emails ainda em autoestradas germânicas, ou bem me teria visto grego com tanta curva e buraco na terra do estimado Papa João Paulo II.

Mas deixemos estas considerações menos simpáticas e concentremo-nos na avenida com esse mesmo nome, em Gdynia, onde o amigo Marcin nos acenava às 11 e meia da noite, segundos antes de darmos início ao descarregamento de animais mais eficiente que já testemunhei.

40 minutos foi o tempo que levámos a descarregar, aclimatar e introduzir no seu novo lar 7 raias, 20 bacalhaus, 4 tubarões, 1 peixe-porco e 30 anémonas! Tanques esvaziados e lavados, equipamento arrumado e despedidas feitas, fizemos check-in no hotel Green Loft ainda antes da 1 da manhã, uma verdadeira proeza!

Todos ficámos assustados quando, ao estacionarmos, percebemos que havia grande festa na discoteca do recinto. Viam-se luzes azuis e corpos dançantes, claramente atestados por demasiado schnapps, mas suspirámos de alívio quando chegámos aos quartos absolutamente silenciosos. Despertadores marcados para as 8 e meia, despedimo-nos até ao pequeno-almoço, antes de rumarmos a casa, com aquela deliciosa sensação de dever cumprido, incrementada pela notícia de que os animais chegados a Ílhavo estavam, também eles, em excelentes condições.

O único ponto menos positivo é que só chegaram a Lisboa 20 dos 30 animais, facto que se deveu a excesso de bagagem no voo TAP e raios me partam se alguma vez entenderei essa lógica, mas as malas têm sempre prioridade sobre os animais vivos transportados. Ok, eu entendo que ninguém quer chegar ao seu destino e saber que a pasta de dentes, pijama e prendas para os miúdos ficaram na origem, mas, caraças, são animais vivos!

Mas enfim, tínhamos confiança no nosso embalamento fabuloso, que já tinha enfrentado provas similares no passado, por isso não tardou muito até fecharmos os olhos em deleite total.

Domingo, 17 de março.

Às 9 e meia da manhã estávamos os 5 sentados nas 2 carrinhas, rumando primeiro ao aquário para deixarmos as 2 últimas garrafas de vinho do Porto ao Marcin e Ewa, a colega responsável pelos pagamentos generosos, último dos quais recebido poucos dias antes da partida. O Waze apontava novamente para o Ozeaneum, a 560 km, onde iríamos deixar os tanques.

Umas horas (e emails no lugar do morto) depois, a chuva e céu cinzento polacos deram lugar a uma amena temperatura de quase 20 graus alemães, com um sol radiante e o Ozeaneum já praticamente à vista, quando…

…este vosso amigo começou a sentir uma vibração deveras perturbadora no volante, que rapidamente me fez perceber que havia algo de muito errado, pelo que liguei os 4 piscas e abrandei, encostando-me à direita. Creio que o veículo se imobilizou exactamente no momento em que o pneu dianteiro direito rebentou, numa grande nuvem de fumo.

“F…-se” pronunciámos todos ao mesmo tempo… “Estava tudo a correr demasiado bem!…”

Eram 4 da tarde quando liguei ao serviço de assistência em viagem da Oscar, que me passaram ao serviço de apoio a sinistros internacionais, aos quais comuniquei calmamente todos os dados da carrinha, do contrato e da nossa situação. A prioridade era chegar a Rostock pelas 6 da tarde, onde apanharíamos o ferry de volta para a cidade dinamarquesa de Gedser, mas esse plano começou rapidamente a esfumar-se à medida que o tempo ia passando e aguardávamos pela assistência em viagem.

Isto, claro, porque os espertos da Oscar acharam que era boa ideia alugar uma viatura sem pneu sobressalente. Em nenhuma das duas carrinhas.

Entretanto chamámos o Miguel e Inês, que já estavam mais à frente e saíram da autoestrada para recuarem até nós, a fim de receberem os tanques, malas e todo o equipamento da nossa carrinha, que ficou vazia e pronta a ser rebocada para a oficina mais próxima.

O diabo é que estávamos no final de tarde de um domingo e a probabilidade de o reboque ter exactamente o pneu de que precisávamos era remota.

Mas adiante.

Entretanto a Inês e Miguel, devidamente carregados com tudo e mais alguma coisa, seguiram até ao Ozeaneum e dissemos-lhes para irem directo para o ferry das 8 da noite, porque o das 6 já seria impossível de apanhar.

Eram 5 da tarde quando rumávamos à oficina Iveco mais próxima, na pequena vila de Kemnitz, a 9 km da cidade Greifswald, onde o nosso mecânico nos deixou à porta do Burger King local e ainda lhe cravei um cigarrito, só para acalmar os nervos.

Eram praticamente 6 e meia da tarde e a hora anterior tinha sido passada ao telefone com a seguradora, que insistia em perguntar o que estávamos nós a fazer na Alemanha carregados de peixes. Expliquei tudo com detalhe, enfatizando que tínhamos todas as licenças e percebendo que estavam a ver se fugiam com o rabo à seringa, à boa maneira das seguradoras do mundo inteiro.

E pois claro que, tal como esperava, às 6 e picos recebi uma chamada da ‘supervisora’, que me explicava que o facto de sermos uma operação ‘comercial’ inibia o seguro, que só se destinava a passageiros particulares. Respondi-lhe da forma mais sarcástica que consegui, indicando que fazia todo o sentido alugar viaturas comerciais apenas para fins não-comerciais. Afinal de contas, quem é que não prefere alugar uma furgoneta para levar a família à praia?

Furioso por dentro, mas mais preocupado com as horas, porque as 8 estavam mesmo ao virar da esquina, entreguei-me à tarefa a que já me devia ter entregado, que era arranjar forma – rapidamente – de percorrermos os 120 km que nos separavam da doca de ferries em Rostock. O que vale é que, enquanto eu estava embrulhado com telefonemas com os cretinos da seguradora, já o David e Nuno estavam em acção.

O Nuno estava a oferecer uma massaroca jeitosa aos jovens funcionários do Burger King, sendo que alguns já estavam a olhar para o relógio e a ponderar sair mais cedo, porque a nossa oferta era bem generosa. O David estava a martelar uns números de telefone de serviços de táxi que o nosso rebocador nos tinha dado, mas estes desligavam-nos na cara quando percebiam que três estrangeiros queriam ir para Rostock, a mais de uma centena de quilómetros de distância.

Seriam 6 e meia quando um motorista, que encontrei no Google, me confirmou que faria o serviço, embora avançasse logo que chegar a Rostock pelas 8 seria praticamente impossível. Na minha cabeça já pensava no ferry das 10 da noite, mas afastava esse pensamento, porque queria era chegar depressa a Copenhaga e embarcar no voo para Lisboa na manhã seguinte.

O nosso motorista Doug, volumoso e cabeludo, apareceu num Mercedes preto poucos minutos antes das 7 e a nossa primeira paragem foi no multibanco mais próximo, porque este amigo não aceitava cartões de crédito. Corri até à casota de um banco, onde o meu cartão azul CGD se recusou a dar-me dinheiro. “Está bonito!…” pensei eu, lembrando-me que o meu cartão ‘TAP Victoria’ estava na carteira do Miguel, para cobrir gasóleos e outras despesas.

A seguir tentei o cartão da Flying Sharks, o que me doeu na alma porque não há nada mais chato de justificar contabilisticamente do que verbas levantadas num ATM, a não ser que tenhamos uma factura/recibo exactamente no seu valor. Empurrando esses pensamentos para os confins do meu cérebro OCD, lá aceitei as duas doses de 200 euros e, a seguir, just in case, ainda usei o Unibanco para sacar outro tanto.

Corri para o táxi com 800 euros na carteira e comecei por perguntar ao Doug se não teria interesse em ir connosco até…

…Copenhaga!

Sim, porque chegar ao ferry de Rostock não era o nosso único problema… Uma vez chegados a Gedser ainda tínhamos 150 km para percorrer até ao hotel Ibis Styles em Copenhaga, mesmo ao lado do aeroporto. Ora, cinco malucos não podiam viajar numa única carrinha comercial de 3 lugares, pelo que grande parte da viagem no Mercedão do Doug foi passada a tentar resolver (mais) essa bronca.

Enquanto o táxi devorava quilómetros na autoestrada germânica sem limite de velocidade, respirámos de (algum) alívio ao percebermos que este amigo nos ia descarregar na doca pelas 19:52, ou seja, 23 minutos antes da hora formal da partida, que seria às 20:15. O diabo é que o website do ferry referia que os bilhetes tinham de ser comprados 30 minutos antes, mas enfim… Um problema de cada vez.

Entretanto soubemos que os 10 bacalhaus que tinham ficado retidos em Copenhaga, no dia anterior, tinham chegado vivinhos da silva a Lisboa, graças a uma mensagem do Reis, que dizia “Quem embalou estes bichos merece extra-queijo na pizza!” “Yes!!!” nem tudo era mau!

De volta à autoestrada e a velocidade alucinante a que Doug nos levava a Rostock, apesar deste amigo se ter disponibilizado para nos levar no seu táxi a Copenhaga, acabámos por articular um plano que era mais sensato para toda a gente, mas note-se no itálico aplicado em “sensato”. O plano envolvia pagar o bilhete de carro do Doug, que entraria na doca do ferry… Nós saltaríamos do Mercedes para o compartimento de carga da carrinha do Miguel e Inês, regressando o Doug à base, alegando que uma situação familiar o impediria de apanhar o ferry.

Nenhum de nós gostou muito do plano e eu já me imaginava numa doca vazia, com todos os outros carros embarcados dada a hora tardia, e meia dúzia de manos da Scandilines, com coletes verdes fluorescentes, a mandarem vir connosco porque a carrinha, sozinha na doca, estava atrasada. Não seria debaixo desse escrutínio que conseguiríamos saltar para fora do táxi e para dentro do compartimento de carga da carrinha, mas esperávamos que A Força nos presenteasse com uma alternativa menos audaz e mais prática.

E foi aí que chegámos ao porto dos ferries de Rostock, às 19:50, depois de quase uma hora a bater nos 200. Vi imediatamente o edifício para compra de bilhetes para passageiros pedestres e, à medida que o táxi acelerava para o pórtico de embarque – e compra de bilhetes – para carros e veículos motorizados, eu pedi ao Doug para parar em frente ao dito edifício para penantes.

De carteira na mão, disse aos rapazes “Dêem-me dez segundos!…” e trepei os degraus quatro a quatro, deixando a porta do táxi aberta. Voei para bilheteira e perguntei ao cavalheiro por trás do vidro “Ainda podemos embarcar no ferry das 8 e um quarto??”

Ele olhou para o meu ar esbaforido e respondeu tranquilamente “Yes, quantos bilhetes deseja?”

“Três, por favor”, disse eu rejubilando por dentro e já com o telefone preparado para pagar. “Alguma criança?” perguntou ele “Não, não. Três adultos.”

“O embarque é por aquela porta à direita, daqui a 4 minutos.”

“Obrigado!” respondi-lhe, enquanto caminhava triunfante para o táxi do Doug, exibindo ostensivamente os três bilhetes pedestres que nos poupariam a salada russa que tínhamos planeado. O visor do Doug indicava 260 euros e meti-lhe 3 notas verdes nas mãos. Ele puxou do livro dos recibos e perguntou-me que número queria que eu lá escrevesse. Pensei com os meus botões que os Oscares teriam de reembolsar o dito e “300” era demasiado redondo, por isso disse-lhe “290”. Ele deu-me 10 euros de troco e eu disse-lhe “Nem pensar, guarde o troco – todo.”

Ainda lhe dei um cartão da Flying Sharks e apertei-lhe as duas mãos com as minhas, agradecendo-lhe profusamente a condução que nos tinha permitido embarcar. Disse-lhe para ir espreitando a área de notícias do nosso website, porque haveria de lá aparecer esta aventura.

Trinta minutos depois estávamos todos alapados no restaurante do ferry ‘Berlin’, com pratos e copos cheios. Salmão, arenque, vinho branco, Coca Cola Zero, gelado com molho de chocolate, camarão, entrecosto e pizza, um festim para corpos cansados e que ansiavam por regressar a casa.

De barriga bem cheia, aproveitei o wifi gratuito – ocorrência rara em ferries – para ligar à Nina e Nikola e dar-lhes um resumo rápido do dia, garantindo que estaria em casa pelas 4 da tarde do dia seguinte, como programado. Nada era mais importante.

À chegada a Gedser, duas horas depois, combinámos que o David iria com a Inês e Miguel na carrinha, de três lugares, faltando apenas arranjar boleia para mim e para o Nuno. Este, mais atrevido do que eu, que estava meio agastado com os acontecimentos da tarde, meteu conversa com um passageiro solitário que tinha pinta de ter carro, sendo que os outros ostentavam um ar operário. Mas, infelizmente, o cavalheiro só iria até meio do caminho para Copenhaga.

Quando atracámos e a porta pedestre se abriu, os aproximadamente 20 passageiros apressaram-se a desembarcar, mas fomos todos impedidos de sair do terminal antes de nos colocarem todos em fila, lado a lado, com as nossas malas dois passos à frente.

Este processo foi controlado pela polícia dinamarquesa que, com cara de poucos amigos, fizeram dois cãezitos cheirarem toda a gente, incluindo as malas, duas vezes cada! Ou seja, cada passageiro e mala levou com quatro cheiradelas, só para garantir que ninguém estava a entrar em terras dinamarquesas com produtos germânicos de natureza obscura.

Finalizada a inspecção, sem ninguém ser catado pelos canídeos, ainda perguntámos às forças da lei se haveria algum autocarro dali para a capital, a 150 km de distância. Sem grande sorte, procurámos – mais uma vez – por soluções no telefone e apraz-me informar que encontrámos uma, embora dite a prudência que não a partilhe num fórum tão aberto.

Contudo, como já passou algum tempo, provavelmente (já) não fará mal mencionar que o interior escuro do compartimento de carga da carrinha pode ser bastante confortável se usarmos as malas da equipa para nos ampararmos. Aliás, o conforto era tal que ainda malhei uns emails no portátil, usando o telefone como hotspot, incluindo um resumo do dia à Oscar e solicitando o reembolso dos 290 euros pagos ao Doug.

Era quase meia-noite quando descarregámos as muitas malas e sacos da carrinha para o passeio em frente ao Ibis Styles em Orestad, perto de Kastrup.

O check-in foi rápido e arrumei as últimas facturas de alojamento na mochila. Eu e Nuno subimos ao quinto andar, onde enfiámos as malas nos quartos, enquanto o David, Inês e Miguel iam devolver a carrinha, que tinha de chegar ao escritório da Oscar antes das 8 da manhã.

Fechei os olhos depois de um belo duche retemperador e sorri ao pensar que já só faltavam umas 16 horas para ver a Nina e Nikola novamente.

Segunda-feira, 18 de março.

O David e Nuno já estavam no pequeno-almoço quando me safei dos telefonemas da Oscar, que perguntava onde estava a segunda carrinha. “Na Alemanha e com um pneu rebentado. Obrigadinho pela falta de sobresselente, triângulo e coletes…” respondi-lhes eu, irritado, sabendo que teria um belo braço de ferro pela frente focado em quem pagaria o resgate da carrinha deixada na Alemanha. E não me enganei.

Entretanto comecei a atestar o prato de baked beans, um guilty pleasure a que não resisto. Deliciei-me então com a história do Nuno que, na noite anterior, depois de descarregarmos as malas no quarto se ofereceu para devolver o carrinho de bagagens no lobby. O diabo é que não conseguiu regressar ao quarto pelo elevador, que precisava do cartão-chave para ser activado, e este tinha ficado no quarto, com a porta entreaberta.

Decidiu então subir por umas escadas, mas estas levaram-no até à rua. Contornando o edifício até à recepção, com uma simples t-shirt na noite dinamarquesa de 3 graus negativos, teve de mandar uns murraços na porta, enquanto o cavalheiro da recepção o ignorava, provavelmente habituado a turistas que se tinham entusiasmado demasiado com canecas de Carlsberg. Ainda tardou, mas o recepcionista lá teve pena do pobre biólogo marinho português, quase em hipotermia, que finalmente pôde subir ao quarto e saborear uma merecida noite de descanso.

O voo de regresso foi tranquilo, tal como a viagem até casa, onde cheguei pelas 4 da tarde, mais coisa menos coisa. Sabia que a Inbox estava a fervilhar, mas que se lixe. Estava com saudades da família e os clientes podiam esperar até ao dia seguinte porque, afinal de contas, o mundo não acabaria.


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