Extorsão
Aqui fica mais uma aventura que irá aparecer na sequela do ‘Tubarões Voadores’ e que relata o dia em que fui constituído arguido do crime de ‘extorsão’.
Algures em maio de 98, regressava do Oceanário com a Leonor, minha mulher na altura, que conduzia o nosso Golf, embora tivesse a carta há pouco tempo. A inexperiência levou-a a deixar o carro ir abaixo numa rotunda, o que aparentemente terá enfurecido um atrasado mental num Toyota Corolla cinzento, matrícula QR-91-?? (ah, como eu adorava partilhar a matrícula toda, mas acho que não devo). O dito atrasado mental resolveu vingar-se do maçariquismo automobilístico da minha companheira, fazendo uma valente guinada logo a seguir a ultrapassá-la na Avenida General Arantes de Oliveira, o que a assustou – e a mim – profundamente e levou-a a virar com violência para a direita, embatendo no lancil de cimento alto com o pneu da frente direito, que rebentou de imediato. Tive a presença de espírito de anotar a matrícula do atrasado mental, que seguiu viagem como se nada tivesse acontecido. Seguiu-se a tradicional mudança de pneu, após colocação do triângulo sinalizador uns metros atrás, e fomos logo directos à esquadra da PSP das Olaias, onde relatei o incidente, dirigindo-me ao atrasado mental como “O animal que nos atirou para fora da estrada.”
O senhor agente que nos ouviu objectou quanto ao uso do termo “animal”, elucidando-me que “os animais não conduzem”. Agradeci-lhe encarecidamente pelo esclarecimento, que muito enriqueceria as aulas que daria a jovens biólogos marinhos anos mais tarde. O mesmo agente explicou-me ainda que as queixas relativas a incidentes de tráfego deviam ser efectuadas na esquadra da PSP dos Olivais, que foi onde nos dirigimos a seguir. O senhor agente dos Olivais ouviu o meu relato e sorriu com a fraseologia animalesca que utilizei, mas apressou-se a responder que o incidente devia ficar registado na esquadra do local onde tinha ocorrido. Perguntei-lhe se tinha a certeza do que estava a dizer, porque estava em contradição com a informação dada pelo colega das Olaias, e, após confirmação convicta, lá voltámos para a esquadra original.
O cavalheiro que me tinha esclarecido quanto à inibição de condução por parte dos “animais”, torceu o nariz assim que nos viu entrar, com aquela cara que diz silenciosamente “Mas o que é que este palerma quer agora?…” Expliquei-lhe que o colega dos Olivais se recusou a receber a queixa e encaminhou-me para a esquadra do incidente, o que enfureceu o senhor agente, levando-o inclusivamente a pegar no telefone e ligar ao colega dos Olivais. O diálogo demorou uns minutos e percebi imediatamente que não ia ter ajuda nenhuma por parte das forças da lei naquela tarde soalheira, porque aparentemente era a primeira vez na história da cidade de Lisboa em que duas viaturas se viam envolvidas num acidente rodoviário e, como tal, havia uma certa confusão – por parte das autoridades – quanto à forma como proceder.
Quando o agente das Olaias me mandou de volta para os Olivais, percebi que estava num loop kafkiano e preferi por isso rumar à garagem da Avenida Rio de Janeiro, onde troquei não apenas um, mas sim os quatro pneus da viatura, uma vez que estavam velhotes. Paguei os 75.955 escudos e fomos para casa, onde lanchámos e tentámos descomprimir da grande aventura com um belo passeio pela Avenida de Roma.
Na primeira folga que tive durante um dia de semana dirigi-me à Conservatória do Registo Automóvel que, na altura, ficava no Cais do Sodré. Esperei pacientemente na fila pela minha vez e, quando finalmente cheguei à senhora que estava sentada por trás de um computador ligado à poderosa base de dados automobilística da nação, dei-lhe a matrícula e paguei cem escudos pela fotocópia do registo do automóvel, que continha o nome do condutor e a morada de um estabelecimento de restauração na Estrada de Benfica. Escrevi então uma carta ao senhor Nunes (apelido do “animal” que, afinal, até sabia conduzir – embora mal) relatando o incidente no qual nos tinha vitimado e enviando-lhe uma fotocópia da factura dos pneus, solicitando reembolso por cheque enviado para o apartado da Alalunga, o negócio de venda de Lingerie (e brinquedos marotos) que tínhamos e que gozava de enorme sucesso na altura. Terminei a carta dizendo-lhe que o visitaria – acompanhado das forças da lei – caso não pagasse até à data X. Coloquei a carta nos correios e congratulei-me pela minha visão extraordinária face à inactividade das forças da lei.
Semanas – talvez mesmo meses – mais tarde, descíamos no elevador para o carro, antes de irmos para o Oceanário (onde a Leonor também trabalhava, na altura), quando um vizinho do mesmo piso nos perguntou “Vocês têm um Golf verde, não têm?…” “Sim…” respondemos, com um ar que implorava por mais explicações quanto àquela pergunta insólita. “É que ontem esteve um polícia lá em casa, por causa de uma tentativa de extorsão, ou qualquer coisa assim?…”
Ficando vermelho que nem um tomate, percebi imediatamente que se passava. A Leonor começou a tremer, enquanto imaginava o marido num calabouço, a ser sodomizado por todos os moradores da Ala F do estacionamento prisional para onde seguramente me iriam atirar. Tentando manter a compostura durante o dia de trabalho, admito que o caso me deixou nervoso e, ao final da jornada, lá fomos novamente à esquadra dos Olivais, onde expliquei que era o dono do Golf verde e autor da tentativa de extorsão, oferecendo-me para prestar os esclarecimentos necessários, o que era imperativamente necessário porque ia ter uma viagem ao estrangeiro dentro de poucos dias. O senhor agente riu-se do meu nervosismo e disse-me que não podia fazer nada, o que foi algo de surpreendente e pelo qual realmente não estava à espera… Aconselhou-me ainda a deixar-me estar sossegado até ser contactado pelas autoridades.
Isso aconteceu uns dias depois, numa sexta-feira em que estava em casa, de folga, abrindo a porta prontamente ao agente da PSP que tocou à campainha. O que se passava é que o senhor Nunes tinha remetido a minha carta para procedimento judicial por tentativa de extorsão, mas, por qualquer motivo, os CTT não tinham registo da letra ‘C’ – o meu apartamento – na morada do detentor do apartado da Alalunga, registada no sétimo andar do meu prédio. As forças da lei viram-se, assim, forçadas a tocar às três campainhas do sétimo piso e tentarem perceber quem era o autor da iníqua tentativa de extorquir quase oitenta contos ao pobre senhor Nunes. Aliviado por finalmente encontrar o autor da carta, o agente rapidamente mostrou fadiga quando comecei a relatar-lhe exactamente o que tinha acontecido, abanando os braços e indicando que o papel dele era meramente o de identificar quem tinha redigido a missiva extorsionária, ficando o resto do caso à responsabilidade da Polícia Judiciária. Aconselhou-me a, eventualmente, arranjar um advogado e fazer-me acompanhar por ele quando fosse chamado para prestar declarações.
Isso aconteceu uns dias depois e lá fui eu – sem advogado – às instalações do Departamento de Investigação e Acção Penal, em Alcântara, quase em frente ao Blues Café. Rodeado de meliantes e drógados de ar manhoso (o acento no ‘o’ foi propositado), lá fui ouvido pelo agente Silva (creio?), que praticamente se desatou a rir quando lhe contei a história. Usando o indicador de cada mão, dactilografou (demoradamente) em seguida a minha aventura e pediu-me para a rever antes de assinar. Estando tudo correcto, assinei o meu testemunho, colocando a minha esperança na Justiça lusitana. O senhor agente Silva recomendou-me, então, entrar em contacto com o senhor Nunes, autor da queixa, e pedir-lhe para a retirar, para que o caso não descambasse num gasto desnecessário de tempo e dinheiro para todos. Deu-me ainda o telemóvel do queixoso, estritamente off the record.
Nesse mesmo dia falei com o dito, que garantia não ter sido o autor da manobra perigosa que descrevi na minha carta e alegava que eu certamente tinha tomado mal nota da matrícula. Perguntei-lhe então “Mas o senhor não é o proprietário do Toyota Corolla cinzento de matrícula QR-91-??” “Sim, sou…” “Então explique-me lá como é que eu inventava uma matrícula e ela batia certo com o modelo e cor do carro?…”
Não me parece que tenha entendido o meu raciocínio e, perante o impasse que se estabeleceu, lá chegámos a um embaraçoso acordo via telefone, segundo o qual eu não lhe pedia para me pagar os oitenta contos e ele retirava a queixa. Mesmo assim, dias depois ainda recebi a carta a formalizar que tinha sido constituído arguido por extorsão, indicando que não podia sair do país sem entrar em contacto com as autoridades. “Bonito serviço…” pensei eu, mas deixei o caso seguir o seu trajecto normal, que eventualmente culminou no arquivamento do dito, por falta de provas.
Entretanto o agente Silva disse-me que a Promotora Pública tinha tomado particular atenção a este caso e, achando-o uma tremenda injustiça, demonstrou vontade em acusar o senhor Silva de condução perigosa, mas dir-se-ia que o seu entusiasmo esmoreceu e nunca mais ouvi falar de nenhum deles. Ocasionalmente, ainda passo à porta do dito estabelecimento de restauração na Estrada de Benfica e interrogo-me se uma lata de gasolina me traria a Justiça que sinto me ter falhado em 98, mas depois apago o isqueiro e sigo caminho. Afinal de contas, quem já tem uma acusação de extorsão, seguramente não precisa de uma de incendiário também no curriculum, certo?
Esta é apenas uma das muitas histórias que utilizo para demonstrar pontos de vista variados nas minhas palestras motivacionais, que são 100% baseadas em ‘mundo real’. Abomino conceitos vagos, retirados do ChatGPT, e gosto de pensar que as minhas palestras constituem um bálsamo de ‘realismo’ no mar de ‘virtualidade’ em que navegamos actualmente…
Se/quando quiserem dar uma injecção de adrenalina na vossa equipa, já sabem onde me encontrar.

