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Durante anos a encomenda bandeira da Flying Sharks foi o brutalíssimo envio de 3100 peixes para a Turquia em dois Airbus 300, com perda de apenas 3 indivíduos. Foi em 13-12-2010 que descarregámos oito camiões TIR no aeroporto de Lisboa, atestados com 44 tanques repletos de bicharada e, nos 14 anos seguintes, fizemos variadas outras proezas, mas não sentimos que nenhuma tenha ultrapassado a loucura turca. Até há duas semanas…
Depois de muitos dias de ansiedade e nós no estômago, porque os percalços burocráticos que antecedem estas operações são sempre perturbadores e ameaçam fazer ruir tudo, como um castelo de cartas. Mas, no dia 3 de outubro finalmente arrancámos para Cartagena, em Espanha. Eu fui de avião e o Zé e Simão conduziram 1.000 quilómetros desde Peniche, numa carrinha especialmente preparada com um tanque de 190 centímetros de diâmetro e um inversor, um equipamento que custa quase 1.000 euros e que converte os 12 volts contínuos da carrinha em 220 volts alternos, o que permite limpar a água com um filtro mecânico, mas também com um escumador de proteínas. Para além de duas pesadíssimas garrafas com oxigénio comprimido, igualmente importante foi o sistema de frio da carrinha, que alugámos à Criorent, na Venda do Pinheiro, porque nos permite manter a temperatura da água bem baixa, condição essencial para reduzir o metabolismo da bicharada e aumentar a probabilidade de correr tudo bem.
Em Cartagena, saboreámos um magnífico jantar com o nosso cliente e amigo dinamarquês Martin e com o investigador Aurelio, primeira pessoa no planeta a reproduzir atuns rabilho, Thunnus thynnus. Depois de meia dúzia de horas de sono polvilhadas com a ansiedade habitual nestas coisas e, inesperadamente, tanto frio que tive de ir ao armário buscar um edredão, o despertador tocou às 6 e meia e, às 9 da manhã da sexta-feira, dia 4 de outubro, estávamos em Mazarrón, na instalação do Instituto Espanhol de Oceanografia, a carregar 13 pequenos atuns, com 100 gramas cada um, pouco antes de eu e o Martin arrancarmos para o seu aquário, Nordsoen, no norte da Dinamarca, a 3.000 km de distância.
A viagem decorreu sem grandes incidentes, embora tenhamos constatado que o alternador da carrinha não tinha vigor suficiente para carregar as duas baterias de 12 volts que acoplámos ao inversor e, como tal, este esforçava-se por debitar 220 volts, mas a voltagem de entrada baixava frequentemente dos 12 volts, ao ponto de o inversor começar a apitar aos 11.5 e se desligar por completo quando chegava aos 11.3 volts. Isto obrigou-nos a tomar algumas decisões difíceis como, por exemplo, qual dos dois filtros operar: o mecânico ou o escumador de proteínas, uma vez que o pobre inversor não recebia potência suficiente para disponibilizar voltagem para ambos. Dada a natureza dos peixes, optámos pelo escumador, que garantia a remoção de matéria orgânica da água, que se ia acumulando num bidão de água malcheirosa, que despejávamos nas áreas de serviço onde atestávamos a carrinha a cada 400 km, ou seja, a cada 4 horas.
Mais ou menos a dois terços do caminho apanhámos o Nuno, que tinha pernoitado junto ao Sea Life Centre de Oberhausen, que se tornou paragem obrigatória nas nossas passeatas pela Europa central. O Martin e eu já levávamos 30 horas no lombo, por isso o Nuno montou-se ao volante e levou a Iveco até ao destino. Não escondo que o ambiente na carrinha não era o mais positivo quando o Nuno se juntou a nós, fruto de algumas perdas de animais na noite anterior, as limitações de potência disponível e o trânsito absurdamente intenso que apanhámos nas imediações de Oberhausen, que não permitia passagem de veículos pesados, como o nosso, e obrigou-nos a dar uma volta do cacete.
Quando parámos para meter gasóleo, pensávamos que só tínhamos 5 atuns a nadar, mas o Nuno mediu os parâmetros da água e gritou “Guys! There’s 6!” ou seja, afinal tínhamos 6! Bem sei que esta taxa de sucesso está significativamente abaixo da nossa média, que ronda os 99% de sobrevivência, mas recordemos que os atuns são uma espécie incrivelmente rápida e esta foi a primeira vez, na história do Universo, que estes animais foram transportados por estrada e dentro de um tanque de 190 cm de diâmetro ao longo de 40 horas.
A feliz informação disponibilizada pelo Nuno animou ferozmente as tropas e o Martin decidiu celebrar o caso com uma bela garrafa de tinto baratucho, comprado na estação de serviço, que dividi com ele enquanto respondia a alguns emails e o Nuno nos conduzia – sem tocar na pinga – até Hirtshals, onde chegámos com os tais 6 bicharocos pela meia-noite e meia, praticamente 40 horas depois da partida.
Não é um resultado perfeito, mas, acreditem, o mundo aquariológico ficou de boca aberta com esta proeza, que ninguém julgou ser possível. E recordemos que o cansaço e sono não foram os únicos obstáculos a vencer, porque o diabo do alternador fraquito da carrinha obrigou-nos a tomar as tais decisões difíceis e estas, para além de operarmos apenas um dos dois filtros, incluíram optarmos por uma condução mais desportiva e que mantivesse rotações altas, apesar do maior consumo de gasóleo. E assim foi que, apesar da enorme ansiedade na barriga e medo de rebentarmos com a transmissão automática, lá chegámos ao destino, sãos e salvos, conduzindo frequentemente em modo manual, para poupar o equipamento.
Seguiu-se meia dúzia de horas de sono e não tardou muito até estarmos a carregar dois cações, um Squalus acanthias e um Galeorhinus galeus, nascidos em Hirtshals e mais 11 lavagantes, Homarus gammarus, também nascidos e criados nesta instituição, que já reproduz um número impressionante de espécies.
Entretanto já era domingo, dia 6 de outubro, e tínhamos 1.500 km até ao nosso destino, Viena, onde chegámos 19 horas depois, após comprarmos vinhetas online que nos permitiam conduzir pelas autoestradas da República Checa e Áustria. Mesmo assim tivemos de lutar com o Waze, que insistia em mandar-nos por estradas nacionais, mas fomos forçando o trajecto em autoestrada, que nos brindou com um nevoeiro diabólico nas últimas horas austríacas.
Eram seis da manhã de segunda-feira, dia 7, quando chegámos ao aquário Haus des Meeres e o dia foi despontando, devagarinho, enquanto fazíamos a aclimatação dos bicharocos à água local, numa caixa grande com rodas. Não é fácil trabalhar num antigo bunker da segunda guerra mundial, com seis andares, apenas um elevador e paredes de betão armado com dois metros e meio de espessura, que não permitem qualquer tipo de comunicação electrónica.
Apesar de tudo, ainda demos duas injecções aos bicharocos, só para lhes puxar pelo sistema imunitário antes de entrarem no seu novo lar e nós saborearmos dois belíssimos duches, que souberam pela vida. Melhor ainda souberam os trinta minutos de Uber até ao aeroporto, onde aviámos duas fatias de pizza pepperonni, logo a seguir a comprar um Lamborghini de Lego ao Nikola, que tem uma impressionante colecção de Legos comprados em aeroportos e estações de serviço.
Seriam cinco da tarde quando aterrámos em Lisboa e desfalecemos nos respectivos lares, sendo que o Nuno ainda teve de conduzir até Peniche.
Enquanto isto, a Inês e Miguel aterravam em Viena e pegaram na carrinha que ficou estacionada no aquário. À sua frente tinham os mesmos 1.500 km de regresso a Hirtshals, onde chegaram pelas 8 da manhã do dia 8, terça-feira. Descansaram 8 horitas e, pelas quatro da tarde, estavam a carregar 35 bacalhaus, 20 ruivos e uma dúzia de badejos. Os primeiros destinavam-se ao aquário do Museu de Ílhavo e os segundos a clientes múltiplos da Flying Sharks.
A Inês e Miguel foram meus alunos e são muitíssimo jovens, sendo contratados em março para nos desenrascarem durante um período particularmente aflitivo e invulgarmente intenso de trabalho. Deram provas de grande profissionalismo e resiliência na primeira passeata que fizeram connosco, que nos levou de Copenhaga a Hirtshals (no extremo norte da Dinamarca) a Gedsen (no extremo sul), onde apanhámos o ferry de duas horas para Rostock (Alemanha), seguindo-se Stralsund, Gdynia (Polónia) e caminho inverso até Copenhaga, com um furo numa das duas carrinhas, o que os obrigou a ficarem autónomos no regresso, incluindo tratarem da devolução de tanques vazios em Stralsund.
Adicionemos a isso um brilhante transporte de barramundis, Scortum barcoo, desde a Bélgica até Torres Vedras, em agosto, e demos por nós a largá-los em tarefas solo que, normalmente, só entregamos a membros tarimbados da equipa. Então e não é que estes jovens amigos se montaram na carrinha no extremo norte da Dinamarca, com 3.000 km pela frente até Ílhavo e, apesar da fraca potência da maquineta e necessidade de tomar decisões continuamente, chegaram à hora marcada aos arredores de Burgos, já em Espanha, com mais de 2.200 km no bucho e uns 800 pela frente??
Esse encontro foi perto da meia-noite de quarta-feira, dia 9, e com o Paulo, um camarada que respondeu a um apelo que fiz de véspera no Facebook, porque uma situação familiar complexa impediu o nosso condutor original à última da hora. O Paulo ligou-me a dizer “Sou o teu gajo!” e, poucas horas depois de abraçar o desafio, saiu de Peniche artilhado com tanques e oxigénio na manhã de dia 9. Nesse mesmo dia, na tal área de serviço no escuríssimo país basco, encontrou-se com a Inês e Miguel, que transferiram a bicharada da sua carrinha – que já tinha levado os atuns à Dinamarca e tubarões a Viena – para a carrinha que o Paulo conduziu de Peniche.
Nesse momento, a Inês e Miguel rumaram a Ílhavo com os animais em tanques com água limpinha de Peniche, devidamente aclimatada com a água dinamarquesa. Ao mesmo tempo, o Paulo montou-se na carrinha com o equipamento de filtração e rumou para norte, para apanhar o ferry da Brittany Ferries que o levaria de Bilbau a Rosslare, na Irlanda, às 17 horas de quinta-feira, dia 10.
Nesse mesmo dia 10, eram 6 e meia da matina quando a Inês e Miguel estacionaram a carrinha à porta do aquário de Ílhavo, onde eu e o Nuno chegámos uns minutos depois, após arrancar de Lisboa às 4 da matina e apanhar o Nuno às 5. Por sorte, a rapaziada da Câmara só pegava às 8, o que nos deu tempo para morfar um belíssimo pequeno-almoço retemperador no centro de Ílhavo. Apesar das 40 horas de viagem, precedidas por mais 18 no dia anterior, a Inês e Miguel ainda conseguiram sorrir para a câmara quando tirámos a selfie da praxe.
Eram quase 9 da manhã quando deslumbrei o Nikola com as fotos e vídeos do papá no empilhador que tirou o tanque onde juntámos os 35 bacalhaus e que colocou no elevador de carga. Devidamente fardados e desinfectados a rigor, introduzimos os animais neste espaço magnífico, onde não foram poupados esforços, nem recursos, para os manter com todas as condições.
A Andreia, também minha antiga aluna, recebeu-nos, e aos bichos, de braços abertos e equipamento de ponta, antes de nos despedirmos, já perto das 10, e rumarmos a Peniche, a 200 km. Pelo caminho ainda tive de parar na área de serviço da Figueira da Foz para lidar com uma trapalhada administrativa relacionada com um polvo expedido para Londres na noite anterior e que estava a ser alvo de uma inspecção veterinária porventura mais zelosa na componente documental do que no bem-estar do animal, porque o pobre bicho levou com mais três horas de trânsito à pala de uma inconsistência entre o tipo de etiqueta indicado no certificado e o que ia realmente na caixa. Lindo.
Seria perto da uma da tarde quando deixámos Peniche, com a carrinha já limpa e arrumada, antes de deixar a Inês e Miguel em casa. Entretanto o Paulo já se encaminhava para o porto de Bilbau e preparava-se para a sua travessia de 30 horas, enquanto eu bebia um Red Bull a caminho de casa, em Lisboa, a preparar-me mentalmente para a quarta e última jornada da nossa aventura.
Esta começou na sexta-feira, dia 11, ao final da tarde. O Nuno apanhou em peniche o Expresso para Sete Rios e daí foi até ao aeroporto, onde nos encontrámos pelas 8 da noite. O plano era voarmos para Dublin às 9, mas o voo TAP foi sofrendo atrasos sucessivos e só descolámos perto da meia-noite, aterrando às 2 e tal da manhã. Entretanto o Paulo já tinha chegado a Rosslare à mesma hora a que o voo deveria ter descolado, pelo que o plano original envolvia chegarmos todos ao mesmo tempo ao aeroporto de Dublin, onde eu e o Nuno saltaríamos para a carrinha antes de levarmos o Paulo ao seu hotel, nas imediações do aeroporto.
O atraso da TAP caldeirou o nosso plano perfeito, por isso disse ao Paulo para ir andando para o hotel que lhe tinha reservado, onde cheguei com o Nuno, de táxi, já pelas 3 da manhã. O Paulo aguardava por nós na rua, com a carrinha a bombar e pronta a seguir. Liguei o inversor, para que este pudesse carregar as duas baterias nas três horas de caminho até Galway, onde chegámos pelas 6 e meia. Pois claro que o nosso plano original, que envolvia meia-dúzia de horas de sono num hotelzito próximo, tinha ido ao ar com o atraso do voo e, como já ando a virar frangos há uns anos, nem sequer fiz essa reserva, por isso nem tive de a cancelar.
Chegados a uma aquacultura de salmões, a poucos minutos de Galway, dormitámos na carrinha durante uma hora, antes de darmos início ao carregamento de 600 peixes que iríamos conduzir até à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real. Essa hora de descanso teria sido providencial se não fosse um aperto na barriga, mal que me assola quando estou nervoso e, na ausência de um estabelecimento apropriado, lá tive de ir atrás de uma moita irlandesa, onde umas folhas bem largas e suaves, ainda por cima húmidas de orvalho fresco, trataram do assunto de forma sublime e refrescante.
Às 8 em ponto estávamos a beber café bem forte com o Pete, gerente da instalação que eu já conhecia de operação similar em janeiro de 2021. A empresa do Pete tinha investido uns 4 milhões de euros na renovação do espaço, por isso mantivemo-nos à porta e formos desinfectados em profundidade, vestindo até oleados novinhos em folha, com pacotinhos abertos por nós, para garantir que não introduzíamos qualquer tipo de patógeno malévolo na instalação, que se dedica exclusivamente à criação e venda de salmão.
Um empilhador da empresa trouxe duas caixas cheias de água doce a dez graus, que usámos para encher o nosso tanque. O mesmo empilhador trouxe depois um tanque carregado de 600 salmões, mais 50 para dar sorte, e elevou-os até a mangueira (com um palmo de diâmetro) de saída do tanque estar acima do nosso tanque de transporte, por isso só tivemos de abrir a válvula desta e os salmões escorregaram alegremente para dentro da nossa carrinha, como se estivessem num parque aquático.
Foi durante este processo que o Nuno proferiu cinco palavras que me gelaram o sangue “Acho que temos um furo.”
“Fuck!” pensei eu, computando na cabeça a monstruosidade da informação recebida. Contudo, quando olhei para o dito, vi que não estava completamente vazio, embora a bolacha espalmada que olhava para mim indiciava claramente um problema gravíssimo e que precisava de atenção imediata. Mas lembrei-me de uma ocasião, um par de anos antes, em que tive problema similar com o David, no sul de França, resolvendo-o com uma garrafa de ar comprimido do nosso fornecedor. Desta vez, porém, na ausência dessa garrafa salvadora, restou-nos conduzir muuuuuuito devagar até à área de serviço mais próxima, onde atestámos os pneus da frente com 51 psi e os de trás com 58, depois de verificarmos estes números na salvadora internet.
Restava-nos percorrer quatro horas até à doca do ferry, em Rosslare, no sudeste irlandês, onde chegámos às três da tarde de sábado, dia 12, em ponto, como planeado. A rapaziada da Stena Lines foi brutalmente competente, como já vem sendo habitual, e permitiram-nos subir para o ferry em poucos minutos. Devidamente estacionados ao lado de uns cavalos e com camiões de ovelhas e gado variado à nossa frente, ligámos o nosso sistema de filtração aos 220 volts do navio, graças a uma providencial ficha azul de três pinos, que preparei na tal viagem de 2021 e que, milagrosamente, sobreviveu até esta nova passeata. Seriam 5 da tarde quando estávamos a tomar magníficos duches no camarote, infelizmente sem janela, antes de despacharmos um belo jantar no ‘Trucker’s Lounge’, com o navio já a navegar.
Depois de enfardarmos um belo teclado regado de molho barbecue, recolhemo-nos à cabine, para dormitar 3 horitas até às 9 da noite, horário para vistoriar animais vivos de acordo com as regras da Stena. Os nossos salmões estavam em excelente estado e a água mais parecia um gigante garrafão do Luso, de tão cristalina. Facto curioso, o escumador de proteínas tinha espuma residual porque, claro está, este equipamento funciona melhor em água salgada, uma vez que os sais da água polarizam a matéria orgânica. Em água doce este efeito é negligenciável e, por nisso, não tínhamos a maravilhosa coluna de espuma cheia de gósmia nojenta que caracteriza os transportes salgados.
Apesar da ausência de escumação, demo-nos por muito satisfeitos com os valores que as sondas indicaram e regressámos ao camarote, onde marcámos o despertador para as oito e meia da manhã, ou seja, onze deliciosas horas depois! Um verdadeiro prodígio e intensamente bem-vindo depois das semanas intensas anteriores. E a melhor parte de todas, os telefones estavam em flight-mode porque o roaming de alto mar é, possivelmente, o mais caro da galáxia!
Um belíssimo sono profundíssimo depois, embalados pela ondulação gentil e causadora de zero perturbação neuronal graças a dois valentes Vomidrines sub-linguais, pois claro que a inspecção das 9 revelou zero problemas e não tardou até estarmos em terras francesas, desembarcando em Cherbourg às 11 da manhã, exactamente à hora planeada. O Waze indicava que chegaríamos a Vila Real, a 1670 km de distância, pelas duas e meia da manhã, mas pois claro que a pobre maquineta, habituada ao meu andamento com a Audi na autoestrada, não sabia que carregávamos duas toneladas de água e material, por isso a hora de chegada foi sofrendo ajustes sucessivos até passarmos pelo portão da UTAD às 6 da manhã, exactamente a hora prevista e indicada ao cliente dias antes.
Facto curioso, o trajecto de ferry durou 18 horas e o trajecto rodoviário de Cherbourg a Vila Real também, mas ambos não podiam ser mais diferentes. As 18 horas de ferry souberam a muito pouco e raios me partam se não teria sabido tão bem fazer trinta horas e desembarcar em Bilbau, mas, para isso, teríamos de esperar mais quatro dias. As 18 horas rodoviárias, pelo contrário, arrastam-se de forma tão penosa que dou por mim a desligar o Waze, só para não ver o horroroso número de quilómetros que ainda estão pela frente.
Chegados a Vila Real, só restava apanhar a bicheza e colocar as 650 almas salmónicas em baldes, tarefa que coube ao Nuno, enquanto eu e o técnico da UTAD acartávamos os ditos pelo mato, até ao laboratório de aquacultura, iluminando com os telemóveis o caminho alagado pela nossa mangueira, que despejava uma tonelada e meia de água doce irlandesa para o mato transmontano. O sol já ameaçava raiar quando nos sentámos numa padaria que nos deliciou, primeiro com o cheirinho delicioso a pão e bolos e, segundo, com os galões e croissants mistos prensados, que devorámos com deleite antes de atestarmos a goela da Iveco com gasóleo baratucho do Intermarché e percorrermos os últimos 300 km até Peniche, onde a Inês e Miguel nos ajudaram a descarregar todo o material e lavar o compartimento de carga.
Seria meio-dia e picos quando rumei à Criorent, na Venda do Pinheiro, com a carrinha tão vazia e ágil que até dava gosto conduzi-la, antes de apanhar um Uber que, por 16 euros, me levou a casa, no Areeiro, o que considerei uma pechincha tão extraordinária que dei duas gorjetas de 2 euros ao simpático rapaz indiano que me depositou à porta do lar, onze dias depois de ter apanhado o voo para Alicante que tinha dado início a esta aventureta.
No total a nossa carrinha percorreu doze mil quilómetros por essa Europa fora, aos quais se somam os mil e oitocentos que a segunda carrinha fez de Peniche a Bilbau e regresso. Foram então treze mil e oitocentos quilómetros que, a uma média de 20 litros aos cem, dá praticamente três mil litros de gasóleo. Tendo em conta que o preço deste variou entre 1,5 euros em Portugal e 2 euros na Alemanha, estamos a falar de aproximadamente 5.000 euros só para gasóleo.
Acrescentemos as portagens (caríssimas) francesas e portuguesas, alguns hotéis, voos variados, muitas sandochas, batatas fritas, águas, cajus, amendoins e, claro, umas dúzias de cafés e Red Bulls, e elevámos o total dos nossos gastos bem para lá dos cinco dígitos, já para não falar do valor diário pago à rent-a-car. Estes são alguns dos números que nos permitiram, então, sermos as primeiras almas na história da humanidade a transportar atuns-rabilho criados em cativeiro ao longo de uma distância tão longa. Para além desses, ainda movemos dois tubarões, onze lavagantes, 35 bacalhaus, 20 ruivos, uma dúzia de badejos e 650 salmões.
Uma equipa de sete pessoas, quatro em particular, praticamente não dormiu durante dez dias, mas congratulamo-nos com o facto de que, à excepção das 7 tristes perdas nos atuns – repito, animais dificílimos – nem uma mosca mais se perdeu, porque tivemos o cuidado de abrir as janelas e deixá-las fugir, sempre que nos entravam na carrinha.
Custou? Muitíssimo.
Mas nada paga a sensação de ‘dever cumprido’ quando se volta a casa depois de uma saga destas, nem as palavras de apreço que ouvimos dos clientes quando vêm os bichos a chegar e o estado em que os entregamos. Só resta, por isso, fechar este capítulo e esperar pelo próximo que, parece, nos vai levar ao Chile e… Arábias??…





























