
Mangonas do Brasíu!
Ui as Mangonas do Brasíu!
Aqui fica um excerto dos eventos em torno de uma ida da Flying Sharks ao Brasil no Verão de 2021, para ajudar os amigos do Oceanic Aquarium num procedimento veterinário em dois tubarões-touro, conhecidos localmente como Mangonas. Esses animais tinham sido vendidos por nós em Dezembro de 2020 e um deles mostrava uma lesão na pele que inspirava forte preocupação. Merecia, por isso, um exame veterinário completo.
E complexo.
Este excerto faz parte do ‘Tubarões Voadores II’, que continua na gaveta electrónica à espera de ver a luz do dia, não por falta de melguice deste amigo.
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(…)
Mas regressemos ao Brasíu, onde eu e o Gonçalo deslumbrámos os presentes com o nosso profissionalismo e este vosso criado, em particular, deixou todos – e todas – com o queixo caído ao usar as suas luvas antiveneno, desenhadas para defenderem um operador de víboras contra as dentadas mortíferas destes organismos. As ditas luvas tinham-me sido oferecidas pelo fabricante das mesmas, a empresa 1-2-1 Animal Handling Products, dos meus amigos holandeses Clem e Maureen, quando nos visitaram dois verões antes, já no final da gravidez da Nina. Desenhadas para víboras, serpentes, cobras e afins, as luvas contêm três camadas de um tecido indestrutível que, embora não me protegessem os ossos da força demoníaca de uma dentada de tubarão, pelo menos – esperava eu – impediriam os dentes de me furarem a pele, o que só por si já constituía um upgrade considerável, caso o manuseamento dos bichos trouxesse algum dissabor.
A operação de captura de uma Mangona fêmea, Carcharias taurus, marcada para a noite, já depois da saída do público, foi precedida por um briefing detalhado, em que apontámos as posições de cada membro da equipa, ensaiando a seguir o procedimento a adoptar, com uma das aquaristas a fingir de tubarão dentro da maca. Satisfeito com a forma fluida com que tudo decorreu, fomos descansar uns minutos para o hotel, antes de regressarmos ao Oceanic Aquarium para executar o plano tão bem delineado. “Descansar no hotel” é um conceito que soa gloriosamente delicioso, não é? Lamentavelmente, na prática, consiste em carburar emails até ao último segundo e fechar os olhos, em cima da cama, durante uns dez a vinte minutos, sempre com o despertador ligado, para não correr o risco de ser acordado por um telefonema do nosso cliente e amigo brasileiro, André Neto, “Então João?? Onde está você?? O pessoal tá todo aqui te esperando, bicho!!”
Com o lombo bem amassado pela viagem e caminhadas para almoço, de e para o hotel e afins, lá vesti o fato de mergulho depois de rever o equipamento todo para, a seguir, carregar a pesada garrafa – e pesos – até à plataforma sobre o tancão enorme onde os mangonas nadavam. Mandaria o bom senso que partilhasse com o resto da equipa o mal que me afligia as costas desde abril, mas macho qu’é macho aguenta tudo e uma boa dose de timidez impedia-me adicionalmente de incomodar as pessoas com a minha maleita, por isso lá me ia aguentando, encostado a postes, paredes e corrimões, sentando-me sempre que possível, para diminuir a carga nas vértebras lombares, particularmente entre as L4 e L5 que, sentia, tinham o disco que as separava completamente esparramado ali à volta e comprimindo o nervo ciático – à bruta. Seriam perto das nove horas da noite quando entrei na água com a seringa na mão, carregada de anestésico, já depois de a Thalita, Rômulo e Marc montarem o shark bag – também comprado à 1-2-1 – que consistia num enorme preservativo transparente, dentro do qual pretendíamos colocar a tubaroa fêmea, para que as veterinárias Juliana e Verônica pudessem completar os seus exames em segurança.
Comecei por tentar aplicar a minha técnica clássica, agarrando na barbatana dorsal da bicha com a mão esquerda e espetando a agulha com a direita. Mas as contas saíram-me ao contrário, porque a bicharoca disparou em fuga assim que sentiu a minha mãozorra exercer uma pressão mínima na barbatana. Pedi então a vara que usavam para dar injecções, o que tornou tudo mais fácil, mas… (há sempre um sacana dum “mas” nestas operações) a agulha preparada para a injecção não era tão grossa quanto eu gostaria, por isso dobrou quando a espetei e vi perfeitamente parte do líquido a sair para a água, quando a retirei do músculo do animal. Sem entender muito bem quanto anestésico é que tinha sido espetado – mas estimando que deveria ser uma metade da dose preparada – dediquei os minutos seguintes a nadar calmamente atrás do portentoso animal, para garantir que não tinha sangue a sair pelo buraco deixado pela agulha, recordando uma experiência amarga, no Oceanário, no distante fevereiro de 1998, em que um pobre bicho sul-africano, da mesma espécie, passou o dia a verter sangue para um tanque de quarentena, até uma inspecção, em calções, dentro da água bem fresquinha do tanque Q9, revelar esse mesmo jorro maldito, que lá fechei com uma pinça veterinária.
Shark bag e equipa posicionados entre o acrílico e destroço decorativo dentro do tanque, só me restava conduzir a tubaroa para dentro do saco, tarefa que se veio a revelar mais complexa do que eu esperava inicialmente.
Comecei por aproximar-me de mansinho do animal, para testar a eficácia do anestésico. Este claramente ainda não tinha surtido efeito porque, assim que punha alguma pressão na barbatana dorsal, a tubaroa disparava em fuga, com aquele baque sonoro característico, quase explosivo, um “Bum!!!” que faz o coração saltar, apesar de estarmos mental e psicologicamente preparados para ele. Duas tentativas falhadas, depois três, quatro, cinco… e fui perdendo a conta ao número de vezes que tentei, até dar por mim a pensar “Mau… Daqui a bocado é de manhã e ainda aqui estamos a tentar aprisionar este animal…” o que me levou a tornar a minha abordagem bem mais afoita.
Com as belíssimas luvas 1-2-1 calçadas, admito que me sentia invencível e comecei a agarrar a bicha de forma mais firme, quase agressiva. Ela nadava em círculos na metade do tanque onde tínhamos colocado o saco, separada por uma rede que mantinha o macho na outra metade, para não haver confusões. Às tantas, depois da curva que a deixava alinhada com o saco, a escassos três ou quatro metros do nariz da bicharoca, agarrei-lhe na barbatana dorsal com a mão esquerda e fui pressionando firmemente o dorso com a direita, para a obrigar a nadar em linha recta e entrar no saco transparente, guardado por dois aquaristas em baixo e um em cima. O Gonçalo ia controlando toda a operação, pronto a saltar em caso de necessidade. Dessa vez a bicha quase entrou no saco, mas, no último momento, percebeu que havia ali marosca e começou a virar para a direita mesmo antes de entrar. Insatisfeito com esta sua resolução, empurrei-lhe o lombo mais ou menos à bruta para a esquerda, para a convencer a meter o narizão no saco, mas a bicha respondeu com uma reviravolta repentina, gravada pela GoPro que o Rômulo tinha na cabeça e que, mais tarde, se viria a tornar num lindo gif animado, em que a bicha faz quase 360 graus numa fracção de segundo e eu me retiro rapidamente para trás, antes que lhe enfiasse as mãos na boca sem querer.
Seguiram-se mais duas tentativas idênticas, até sentir que numa delas a bicha já não me contrariava e parecia mesmo resignada à sua situação. A câmara do Rômulo captou a minha ansiedade, enquanto a guiava para o saco com a mão esquerda e fazia gestos frenéticos com o braço direito, apontando para baixo com insistência, porque o saco tinha, entretanto, subido e a tubaroa, mantendo a sua trajectória, ia mas era passar debaixo dele! Mas a equipa funcionava de forma quase telepática – sendo esses um dos motivos pelos quais insisti em levar um comparsa com quem partilhasse este link mental – e o saco tocou no chão mesmo antes do glorioso momento em que o nariz da tubaroa lá entrou! Pois claro que a bicha ainda tentou escapar, assim que percebeu onde se tinha metido, mas o cansaço, aliado ao anestésico e um belo empurrão lusitano, que a enfiou bem para o fundo, trancaram-na definitivamente no sacão, que fechámos de imediato.
Os minutos seguintes foram mais ou menos tranquilos, embora com a tensão que se sente quando lidamos com animais vivos, particularmente quando têm mais de dois metros e uma boca cheia de dentes bicudos. Enquanto estivemos à superfície, o plano traçado nessa tarde foi seguido à risca: o Gonçalo segurava uma bomba que disparava água, repleta de oxigénio puro, para a boca do animal. Eu e o Rômulo entrelaçámos as pernas e segurávamos o centro do animal, enquanto a Thalita e Marc controlavam a situação perto da cauda.
Tranquilos e animados com o sucesso da operação até àqueles momentos, fomos virando a bicha para aqui e para ali, facilitando o acesso das veterinárias, que efectuaram uma raspagem do tecido lesionado, retiraram sangue da base do pedúnculo caudal e ainda fizeram uma ecografia do ventre, para garantir que não havia por lá nenhum corpo estranho ou modificações suspeitas dos tecidos. No total tivemos a bicha imobilizada perto de uma hora, que era o limite que nos tínhamos imposto. Mas fomos monitorizando regularmente os batimentos das fendas branquiais, que estavam normalíssimos. Procedimentos concluídos, a Juliana fechou a operação ao injectar uma substância reversora do anestésico usado, o que acordou a bicha de imediato e só nos restou facilitar a sua saída do saco abrindo-o completamente.
Foram distribuídos high-fives em abundância, seguindo-se um belo duche geladinho, mas retemperador. O serão terminou na sala de educação do aquário, com uma dúzia de deliciosas pizzas da Pizzaria do Pirata, o mais recente negócio do emblemático Kiko, director e dono do aquário. Nessa noite não houve emails quando regressei ao hotel. Lavei os dentes, vesti o pijama, pus o despertador para as nove (ou dez?) e caí redondo na cama, acordando infelizmente pelas quatro da manhã, que era a hora a que o meu corpo jet-lagado pensava que um novo dia ia começar.
Este procedimento foi repetido na noite seguinte com o tubarão macho. O processo foi em tudo idêntico, excepto o facto de estar seguro de que praticamente nenhum anestésico tinha entrado dentro do maroto do bicho. Isto significou que acabámos por vencê-lo pelo cansaço, depois de uma dúzia de tentativas infrutíferas para o enfiar dentro do saco. A dada altura, o animal estava tão exausto que parou no fundo do tanque pelo que, em vez de o enfiar no saco, acabámos por meter-lhe o saco em cima! Se a montanha não vai a Maomé, o Maomé vai à montanha!
Mais uma vez, as milagrosas luvas 1-2-1 dotaram-me de poderes de invencibilidade que não passaram despercebidos aos membros da equipa, que me acolheram com olhares esgazeados de espanto no fim dos dois procedimentos e variações do comentário “Cara, ‘cê ‘tá louco???” Louco, não estava… Mas bem à rasca das costas, sim. Aliás, se a forma energética e quase imprudente com que me atirava à arte de pegar nos bichos e metê-los no saco suscitou comentários de admiração, o meu andar frequentemente frankenstónico também não passou despercebido, o que levou o André a perguntar-me “‘Tá manco, João?”. “Pois estou…” respondi eu, antes de partilhar o incidente no ginásio a 8 de abril, cujos efeitos perduravam – e se agravavam – há já praticamente quatro meses. Foi nessa viagem que, alucinado de dores na perna esquerda, decidi que estava na hora de ir ao médico e investigar porque diabo as dores estavam cada vez piores. Não esqueçamos que já tinha tido crises violentas com hérnias em 2005 e 2017, sendo que, nesses dois casos, as dores foram lentamente cessando após os momentos de pico que lhes deram origem. Neste glorioso 2021, contudo, dir-se-ia que a dor tinha vindo para ficar… Cada vez pior.
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