
O Ritual
A pandemia acabou-me com um dos meus rituais favoritos e que era a tranquilidade de uma (ou duas) idas semanais ao cinema. Durante duas horas saboreava um telemóvel desligado, que é bem diferente de tê-lo no silêncio, enquanto o Tom Cruise fazia rapel no Burj Khalifa e eu devorava pipocas regadas com Cola Zero bem geladinha. Na altura eram doces, antes de a barriga ditar a abolição dos açúcares.
Que paz experimentava durante os anúncios, cada segundo sorvido com a intensidade de quem se prepara para acolher duas horas de puro prazer. E que profunda tristeza surge quando as luzes se acendem e rolam os créditos, atirando-me para uma Inbox repleta de chatices e bolinhas vermelhas a sinalizarem chamadas não atendidas e malditos whatsapps para responder.
Hesito em usar a palavra “depressão” por respeito aos que dela padecem clinicamente, mas não me ocorre outro termo para categorizar o fim de duas horas de fuga e o regresso ao mundo das broncas e apagar fogos.
O gráfico mostra a sofreguidão com que me entreguei a estas sessões de terapia que, vendo bem as coisas, sempre saem mais barato do que um consultório com um divã. Por uma dúzia de euros escapava da realidade cruel e as barras são um excelente indicador do ritmo com que me assaltaram nos últimos anos.
Ultrapassei os três dígitos em 2015 e 16, anos de consolidação da Flying Sharks, que é uma forma eufemística de dizer que estávamos à rasca e não sabíamos se aguentaríamos muito mais tempo. Mas aguentámos e as coisas foram melhorando paulatinamente, com juízo, ganas e um belo par de… bom, sequelas de Star Wars, que não exerceram o seu fascínio só enquanto as absorvi, com todos os poros, porque a antecipação pela chegada também foi terapêutica.
E depois veio a porcaria do confinamento, à pala de uma porta mal fechada num instituto de investigação em Wuhan, ou um pagolim que drunfou um morcego. Nunca vamos saber quem nos confinou. Eu cá só sei que as barras verdes nunca mais voltaram à magnitude de outrora, até porque, agora, há um chouricito de seis anos e muitos, muitos, mais e-mails do que havia antigamente.
Valha-nos o facto de que os e-mails normalmente se convertem em euros e a família gosta de dormir até tarde, pelo que este vosso criado ainda pode começar o dia com uma caneca de chá energético no sofá, enquanto o Anthony Hopkins exorciza demónios no ecrã – pequeno, mas satisfatório.
PS – o gráfico é fruto da minha diligente anotação de filmes (e não só) em Excel desde que recebi o meu PC Olivetti com um estonteante disco rígido de 20 mega-bytes em 1989. Na altura fazia-o no Lotus 123 e os ficheiros só podiam ter 8 caracteres, sem acentos, cedilhas, espaços ou loucuras. O nome “CINEMA” do ficheiro está, por isso, a caminho dos 40 anos.